O pecado das vítimas

Os padres e freiras que abusaram física e psicologicamente de crianças só o fizeram porque foram corrompidos pelas suas vítimas…

por João Cerqueira

Perante o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal, que concluiu que houve quase cinco mil casos de abusos sobre crianças e adolescentes e que houve ainda um encobrimento dos mesmos pela hierarquia da Igreja, sucederam-se reações violentas. Houve quem pedisse a demissão do cardeal-patriarca D. Manuel Clemente e do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa D. José Ornelas. E houve quem fosse mais longe argumentando que toda a hierarquia da Igreja se deveria demitir por ter sido conivente com os abusos das crianças.

Estas posições extremadas resultam de um desconhecimento das origens da natureza do mal.

Santo Agostinho afirma que o ser humano já nasce com o mal dentro de si por causa do Pecado Original, o que o leva a fazer mau uso do livre arbítrio concedido por Deus. Rousseau tem opinião diferente: o homem nasce puro e é o meio que o corrompe. Colocados perante as duas hipóteses de explicação do mal que ao longo dos tempos têm dividido os pensadores, os bispos desta vez não seguiram os ensinamentos dos doutores da Igreja preferindo a explicação laica de Rosseau.

Ou seja, os padres e freiras que abusaram física e psicologicamente de crianças só o fizeram porque foram corrompidos pelas suas vítimas. Afinal, aqueles meninos e meninas eram uns pequenos selvagens que passavam a vida a cometer o pecado solitário, a roubar comida uns aos outros e a andar à porrada. E nem com santos espancamentos e sagradas torturas se endireitavam. Portanto, faz todo o sentido que os bispos tenham feito orelhas moucas às denúncias dos abusos, uma vez que quem realmente tinham sido abusado e desencaminhado tinham sido os pobres dos padres e as desgraçadas das freiras vítimas das tentações daqueles animaizinhos viciosos. Demais, se tivessem seguido o caminho inverso, acreditando em Santo Agostinho em vez de Rosseau, os bispos seriam forçados a uma conclusão contrária inaceitável. Ou seja, os meninos e as meninas que sofreram abusos eram inocentes desprotegidos a quem nunca passou pela cabeça praticar atos sexuais com adultos. Ora esta conclusão desagradável não poderia ser aceite pois levaria a outra ainda pior: os padres que os violaram eram umas bestas sem alma, porcos depravados que envergonham a condição humana; e as freiras que espancavam meninas ou as levavam aos padres para serem abusadas eram igualmente umas bestas sem alma, porcas sádicas que envergonham a condição humana. Portanto, os bispos e outras autoridades eclesiásticas que durante décadas ouviram rumores sobre pedofilia na Igreja, receberam denúncias das vítimas e das suas famílias, e talvez tenham visto com os seus próprios olhos comportamentos impróprios, só poderiam concluir que se de facto alguma coisa horrível aconteceu entre crianças, padres e freiras, tais horrores resultaram de os membros da Igreja terem sido corrompidos por aqueles selvagenzinhos ingratos.

Assim se compreende melhor a posição do bispo do Porto D. Manuel Linda que deu uma linda resposta ao desvalorizar a pedofilia na Igreja, e que foi acusado de encobrir os abusos sexuais do padre Heitor Antunes e de ter dito à vítima que a responsabilidade era dela. D. Manuel Linda, esse santo homem com lugar cativo no Céu, é um profundo conhecedor da natureza do mal e percebeu logo que tinha de proteger o sacerdote das tentações carnais da rapariga. E protegeu-o tão bem que o padre nunca foi preso.

Por outro lado, também se compreenderá melhor o comentário feito pelo Bispo da Madeira D. Nuno Brás que, impassível, como se estivesse a falar de cobaias e não seres humanos, afirmou que «a consciência que havia de todas estas situações era muito diferente». Ou seja, há vinte anos a Igreja ainda não compreendia que os abusos sexuais de crianças eram um crime gravíssimo. Sendo as crianças umas criaturas perversas que os padres e as freiras tentavam libertar do pecado, era natural que não percebessem que não lhes podiam fazer certas coisas. Afinal, entre os cientistas também não havia a consciência de que era errado eletrocutar cobaias ou forçá-las a inalar fumo até morrerem. Felizmente, graças a homens como D. Nuno Brás, outro com lugar no Céu, a Igreja evoluiu.

Concluindo, até foi bom isto ter acontecido porque permitiu à Igreja reconciliar-se com o Iluminismo e compreender melhor a ciência. Contudo, espera-se que a Igreja assuma as suas responsabilidades e suporte os custos da ajuda psicológica que os padres e as freiras, vítimas de crianças taradas, necessitam.