“Quando não se deitava nada fora”

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Não te vou perguntar como correu o Carnaval… Todos sabem que somos bastantes foliões mas que não gostamos nada de participar neste festejos.
Hoje, gostaria de recordar contigo um objeto de decoração que está nas memórias de todos os que nasceram no século passado. 
Esta manhã, quando entro no prédio, a porteira tinha a porta de casa escancarada. Não sou de andar a olhar para as casas das pessoas, no entanto, quando passo para começar a subir as escadas, não consigo ficar indiferente a um grande quadro que a senhora tem mesmo de frente à porta de entrada.
Nada mais, nada menos, do que um quadro com o “Menino da Lágrima”.
Que objeto triste para se ter à entrada do lar, doce lar. Parece que quem entra na casa não é bem-vindo. Diria até que este quadro é triste para ter em qualquer divisão da casa!
Este quadro assombrou a infância das crianças da minha geração. Fazia parte da decoração, de mau gosto, de muitas famílias. Era comum encontrá-lo nas casas dos pais e dos avós. Como não podia deixar se ser, o medonho quadro também comoveu a minha mãe e esteve lá pendurado nas paredes de casa durante décadas.
Pergunto como era possível, tanta gente, gostar de ter a imagem de uma criança angustiada pendurada na parede?
Consta que o responsável por esta obra deprimente foi Giovanni Bragolin. Um pintor italiano responsável por uma série de quadros chamada “Quadros das crianças que choram/ Crianças chorando”. Segundo a lenda, e os boatos da altura, o próprio Bragolin afirmava que tinha feito um pacto com o demónio para ter sucesso e fama imediata, e que foi esta série que lhe proporcionou isso, imagina. 
Não te esqueças que o nosso Ruy de Carvalho celebra 96 anos na próxima semana.
É sempre uma emoção vê-lo comovido no final de cada espectáculo.
O “Avô da Lágrima” que faz render o público de norte a sul do país.
Bjs

Querido neto,

Conheces tão bem esta tua avó! Carnaval e quadros do “Menino da Lágrima” nem vê-los! Ainda bem que a tua mãe se desfez desse quadro medonho.
Há coisas que eu não sou capaz de deitar fora. Até porque pertenço a um tempo em que não se deitava nada fora.
Confesso: não sou capaz de deitar fora livros.
Para além de receber muitos livros (os meus amigos pertencem quase todos ao ramo), eu ainda sou uma compradora compulsiva!
Periodicamente, lá encho caixotes de livros que vou enviando para bibliotecas ou escolas: livros que sei que nunca mais vou reler, livros que tenho em várias reedições, ou até livros de que eu, pessoalmente, não gosto, mas entendo que outros amem de paixão.
Mas não é desses que estou a falar: refiro-me àqueles que não mereceriam (se eu fosse capaz…) outro destino a não ser o lixo. Tão maus, ou tão inúteis, que não me passa pela cabeça dá-los nem ao meu pior inimigo.
Nos primeiros tempos da revolução, quando, de repente, descobrimos que podíamos viajar para os países até então proibidos da Europa de Leste, era fatal: regressávamos todos de lá vergados ao peso de toneladas de volumes encadernados com todas as intervenções dos camaradas nos diversos órgãos de soberania dos seus países. E – requinte dos requintes! – na sua língua original.
Lembro-me de ter tido de comprar um saco só para nele enfiar os discursos do camarada Jivkov, que me ofereceram na minha primeira ida à Bulgária.
Digam-me: o que é que eu lhes faço?
Contava o meu querido amigo Alçada Baptista que uma das suas tias, ao ver-se confrontada com a pergunta de uma das criadas («O que é que eu faço às velhas listas do telefone?») terá respondido: «Dê a um pobrezinho».
Se calhar, vou seguir-lhe o exemplo. Tal como eu, ela também era de um tempo em que não se deitava nada fora.
Dá um beijo meu ao Ruy de Carvalho. Diz-lhe que o amo de paixão.

Bjs