Quarenta e três anos de solidão: António Lobo Antunes e O Tamanho do Mundo

Quarenta e três anos depois de Os Cus de Judas, Lobo Antunes desinteressou-se da história, ou talvez já não tenha grande coisa para contar, e tudo não passe, para ele, de um interminável jogo de linguagem.

Quarenta e três anos de solidão: António Lobo Antunes e O Tamanho do Mundo

Texto de Paulo Bugalho

Quando Burckhardt, o explorador suíço, entrou pela primeira em Petra, no ano de 1812, só ainda havia murmúrios. Sobre a antiga capital dos nabateus, prodígio perdido no meio da actual Jordânia, corriam apenas boatos de beduínos e lendas da antiguidade romana. Podemos invejar esse primeiro impacto, o encontro inaugural, mas será difícil imaginá-lo, num mundo onde o conhecimento indirecto das coisas precede sempre a experiência real, e se torna cada vez mais estreito o caminho que leva a uma primeira vez. Petra, cidade de templos e de túmulos escavados na pedra, arquitectura imaginada para água que já não corre, com o seu coração de cantaria amontoada, é hoje o cruzamento de banalíssimas vias turísticas e não podemos entrar nela que não caminhemos já munidos de todas as imagens e de todos os relatos. É impossível gozá-la, hoje, sequer como a ruína que Burckhardt gozou, na sua entrada pelo desfiladeiro até à visão de Al Khazneh, a câmara do tesouro, que todos passaríamos a conhecer no cinema, pela mão de Indiana Jones.

Assim o modo como acedemos á obra de um escritor conhecido, mesmo que a conheçamos mal. Não podemos apreciar a obra de António Lobo Antunes com a inocência com que o terá feito Daniel Sampaio, quando levou Memória de Elefante (assim reza a história, em mais um murmúrio a prefigurar um mito das origens) ao seu primeiro editor. Como escolhos existem o que nos disseram entretanto de Lobo Antunes, toda a obra de Lobo Antunes e, também para desajudar, o que o próprio tem dito durante décadas sobre si mesmo, o fantasma construído pelas mãos do autor sobre o seu esqueleto pessoal, em entrevistas, poses, sobrancerias e desilusões. No caminho atravessa-se a admiração alheia e a arrogância de uma certa falta de aprumo, que é a de todos os idólatras. Contudo, como Petra, ele está lá, o autor continuado de uma obra, os seus livros como os tantos túmulos na via triunfal da grande urbe. Lobo Antunes será, como se tornou Camilo Castelo Branco e começa Agustina a tornar-se, um autor difícil de encontrar, porque, partilhando ou não da grandeza (não iremos sobrepor-nos ao futuro, que é o eterno juiz destas corridas), partilha seguramente o ímpeto produtivo, como criador de uma lista extensa de onde o leitor, apressado porque também é mortal, terá sempre dificuldade em extrair o diamante que represente a obra-exemplo a ter a conta, o núcleo visível de uma qualquer irradiação. Mas pode tentar-se sempre uma comparação avulsa, emparelhando uma das primeiras obras (escolhamos Os cús de Judas) e esta que nos apresenta ao fim de oitenta anos de idade e quarenta e três anos de carreira – O Tamanho do Mundo.

Os cús de Judas relata a carreira de um médico sem experiência na guerra colonial, as comissões nos sítios perdidos de Angola, num mato estranho de significados, onde o sangue da pátria se esvai com o significado pessoal dos que a servem. Os detalhes são diferentes e semelhantes aos de tantas narrativas de guerra, desde Ilíada até A oeste nada de Novo, repetem os mesmos bordados de absurdos e a nulidade da carne, que é a experiência de todo o soldado raso. Com a diferença de ser portuguesíssima esta experiência, porque com os insultos próprios à nação (o enfermeiro que me ajudava repetia caralho, caralho, caralho com pronúncia do norte, descreve o protagonista, após mais um emboscada sangrenta) e a transformação dos sítios africanos à pequenez insalubre da província lusitana, os tremendos pores-do-sol adaptando-se ao cantinho térreo da portugalidade, nomes, hábitos, modos de lidar, comidas e tiques da aldeia. As entranhas dispersam-se, no entanto, os corpos recebem amputações e quebram-se pelos encaixes e o sexo é sempre o momento próprio para a próxima doença, a forma mais ridícula de castigar a carne. O amor e a paternidade adiam-se e quando se retomam já não podem saber ao mesmo. O contar desta aspereza, da estupidez inerente aos gestos e às razões, ocorre pelo pretexto de um engate, primeiro num bar, depois na casa quase vazia que o narrador não sabe ocupar sozinho. O ex-soldado é quem, regressado à pátria e já em tempo de após revolução, encontra na meia-idade o lago pútrido do desamor e da solidão e resume as trocas a noites vaporosas com seres da mesma espécie, mulheres apátridas onde uma e outra vez tenta penetrar, como se tentasse regressar à inocência através do pecado. Esse engate, que é a forma que o soldado-médico que foi Antunes tem de resgatar a história e expor os órgãos lesados a uma mulher indiferente, ou interesseira ou só cansada (nunca o sabemos bem), é o engate que o escritor Antunes lança sobre o leitor, uma tentativa séria de sedução. Que funciona em muitas ocasiões, porque há gestão precisa dos tempos narrativos (o capitular de cada secção funciona como um relógio quase até ao fim do livro) e um talento para a imagem que só não é perfeito porque por vezes desliza para o mais despudorado kitsch. Uma coisa é dizer fome côncava, descrever a cor de Novembro da alcatifa, explicar que o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, escrever a pedra pomes da Lua, ou a rumorosa constelação de pombos, descrever o sofá de que as molas atravessavam o veludo como as clavículas das mulas idosas o couro gasto dos seus ombros (para escolher de entre tantos outros achados), outra é encavalitar expressões como açucarados do algodão de feira popular da bruma ou do mar […] a retrair e a distender a bronquite pedragulhosa do seu pulmão invisível, para descrever a bruma marítima, ou ainda o perigo de esticar a corda em frases onde as metáfora são metáforas de metáforas e estas ainda metáforas de outras coisas, numa espécie de desincrustar de bonecas russas que só acaba no infinito: “Negros desfocados no excesso de claridade trémula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-se com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados  para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbado, e eu imaginava adiante dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires”  . É como se em Petra tivéssemos encontrado um túmulo por dessagrar, mas no entulhamento as ossadas escondessem o brilho dos artefactos.  

Quarenta e três anos depois, Lobo Antunes desinteressou-se da história, ou talvez já não tenha grande coisa para contar, e tudo não passe, para ele, de um interminável jogo de linguagem. O roteiro de O Tamanho do Mundo resume-se sem gasto, pese embora a tentativa de o tornar indecifrável pelas técnicas mais modernas: sozinho numa casa cheia de ecos, o velho herdeiro de uma empresa relevante recapitula a relação impossível com uma mulher pobre, com quem teve uma filha que por razões de pudor social e familiar nunca pode assumir, mesmo que a tivesse feito subir atrás de cortinas nos quadros da gestão, fazendo-a ascender a uma posição vantajosa, mas, como a dele próprio, infinitamente solitária (a visão da filha sobre este deserto é outros dos ângulos fulcrais da história). Insinua-se, pelo meio, um vago enredo criado para roubar a herança e a fortuna do velho. Há o imenso luto do que não nunca chegou a ser, do amor que não houve, e uma gula nunca satisfeita (por dinheiro, por sexo, por poder, por afecto). Mas nada disto parece importar muito e o leitor não pode fugir a perceber no enredo uma certa contingência. Insinua-se uma dúvida, a sensação de que tanto podia ter acontecido assim, a história que agora lemos e em nome da qual suspendemos a nossa própria existência, como de outro modo qualquer. Essa fenda quebra o pacto da leitura.

Antunes, que saiu da guerra há muito tempo e há muito tempo se internou nos livros, interessa-se agora pela linguagem e pelo ritmo, e a verdade é que estes parecem, por momentos, justificar o tempo da leitura. Há a mesma obsessão pela imagem cheia de relevos inesperados, agora contida, menos barroca, voltejando em redor de temas umas vezes repetidos (amas, tias hieráticas, pais distantes, irmãos amados, os omnipresentes pombos, que nunca são só pombos e sempre uma espécie de escriturários cabisbaixos caminhando com as mãos atrás das costas) de outras vezes inventados de propósito para o evento (baloiços, estalos dos móveis no silêncio, músicas de infância, a outra margem do Tejo vista à noite). Mas existem cesuras radicais, frases partidas a meio das palavras e períodos inteiros repetidos, como o motivo de uma sinfonia.

– Deixar-nos de nos

(como há sempre um de óculos)

– Deixar-nos de nos ver porquê?

[…]

– O seu rim

No tom em que diria

– O seu melhor amigo

e ela não se atrevendo a levantar a cabeça, espantada, abrindo e cerrando o fecho da malinha, tic tic, tic tic

– E agora

[…]

(há sempre um ruivo em cada escritório, como há sempre um coxo)

e depois não era aquilo, e depois eles zangados

– Nunca mais nos vemos porquê?

(como há sempre um de óculos)

 – O seu rim

 O efeito é frequentemente encantatório. Mas não menos vezes redundante, sobretudo à medida que o relato avança e se entende o pouco interesse que o escritor, perdido na sua casa de silêncio e anos, retém pela existência, ou pelo menos pela história que se propôs contar (mesmo mantendo o ouvido para a oralidade e a insuperável capacidade para rotular as imagens mais gastas do quotidiano).

A casa do escritor é agora como uma dessa perspectivas arquitectónicas de Petra, que todos podemos captar num telemóvel, um enfiar glorioso de frisos e colunas, frontarias cujos vãos, vistos de perto, são afinal os buracos deixados pelos últimos beduínos e o fumo que fixaram nas paredes dos antigos túmulos. Ao fim de contas, talvez ao leitor aproveitasse um certo recuo, ler a obra de António Lobo Antunes em sentido inverso, como o patinador que inaugura o capítulo primeiro de Os cús de Judas: “Do que gostava mais no Jardim Zoológico era do ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer […] E lá fora, indiferente à música fosca que os altifalantes embaciavam […] o professor preto continuava a deslizar imóvel no ringue de patinagem debaixo das árvores com a majestade maravilhosa e insólita de um andor às arrecuas”.