Arrendar e trabalhar compulsivamente

Afinal, por que motivo alguém precisa de mais do que uma casa? Acaso essas pessoas possuem o dom da ubiquidade como Santo António de Lisboa?

Na senda de grandes medidas para desenvolver o país, torná-lo mais democrático e aumentar os direitos dos cidadãos, o Governo anunciou que vai obrigar os proprietários de casas devolutas há mais de um ano a arrendarem-nas. Embora esta medida coerciva pareça própria de um regime totalitário onde a propriedade privada não vale nada, nem tão-pouco a liberdade individual, ela é, pelo contrário, assaz liberal e profundamente humanista. Tudo depende do lado pelo qual se aborda o problema da habitação. De um lado, estão milhões de portugueses com dificuldades em encontrar uma casa. Do outro, estão uns milhares de proprietários egoístas indiferentes ao sofrimento dos seus compatriotas sem casa. Como não podia deixar de ser, o Governo socialista optou pela maioria e vai assim resolver o problema da habitação, dinamizar o mercado e promover experiências de mindfulness a quem sofria de ansiedade por não conseguir arrendar uma casa.

Por outro lado, o Governo dá também uma lição à trupe dos proprietários com duas ou mais casas devolutas. Afinal, por que motivo alguém precisa de mais do que uma casa? Acaso essas pessoas possuem o dom da ubiquidade como Santo António de Lisboa? Conseguem, ao mesmo tempo, estar numa a jantar e na outra a tomar banho? É claro que não. Apenas o santo conseguia semelhante prodígio e nunca o usou para fazer especulação imobiliária. O Governo pode portanto invocar o exemplo de Santo António de Lisboa para dar consistência moral às suas decisões políticas. Porque, além da especulação e do desprezo pelo sofrimento alheio, os proprietários de duas ou mais casas devolutas mantêm-nas em seu poder para irem para lá fazer festinhas, levar amantes e dedicarem-se a outras práticas secretas que os envergonhariam se realizadas na habitação própria permanente.

Resolvido o problema da habitação, o Governo irá agora aplicar o método liberal coercivo para acabar com o desemprego. Todos os desempregados irão ser obrigados a trabalhar. Inspirado na Lei das Sesmarias de D. Fernando I – que obrigava os proprietários rurais a cultivar as terras e para lá despachava os mendigos e os ociosos das cidades – e nas posteriores medidas do Intendente Pina Manique – que limpou Lisboa dos vadios pondo-os a aprender ofícios em casas de correção –, o Governo vai solucionar o mais grave problema do país. Obviamente que no século XXI o Governo não poderá mandar a polícia a casa dos desempregados e levá-los algemados para locais onde haja falta de mão-de-obra. Era capaz de haver reações desagradáveis. Infelizmente, como a maioria dos portugueses não frequentaram a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, não conseguem compreender que todas as ações do Estado, ainda que violentas e absurdas, são para o seu próprio bem. E quando não são para o seu próprio bem, são para o bem coletivo. E quando não são para o bem coletivo, são para o bem de quem governa. E quando nem sequer são para o bem de quem governa, é porque estamos em Portugal.

Assim sendo, face à falta de civismo dos portugueses e à má vontade contumaz contra o Estado, o Governo irá criar um gabinete de estudos, algumas comissões técnicas e um centro de mindfulness imobiliário e laboral para encontrarem a maneira mais eficaz de os convencerem a abrirem as portas das suas casas devolutas e a deixarem-se levar para locais de trabalho onde falte gente. No entanto, para dar o exemplo, o Governo vai começar por lançar no mercado as centenas de casas devolutas pertencentes ao Estado e a obrigar os deputados socialistas a nunca mais faltarem a nenhuma sessão parlamentar.

E como resultado colateral do trabalho coercivo serão ainda resolvidos os problemas da educação, da saúde e da justiça pois o direito à greve torna-se ilegal. O STOP desaparece tão depressa como apareceu e Mário Nogueira será forçado a trabalhar. Por fim, para isto ficar perfeito só faltará aplicar as tão ansiadas medidas de combate às fake news e desinformação para obrigar compulsivamente os meios de comunicação social a noticiarem apenas a verdade aprovada pelo Governo e a encerrar contas hostis nas redes sociais.

Afinal, não é preciso ocupar pontes, como preconizara a assessora da ministra do Trabalho, para resolver os problemas do país. Basta coagir, forçar e impor com um toque de mindfulness. Em suma, basta obrigar os portugueses a aceitar os valores democráticos do Governo.