Os expedientes dilatórios…

Ivo Rosa candidatou-se a procurador europeu, enquanto aguarda a conclusão dos processos disciplinares que tem pendentes no CSM…

Queixou-se José Sócrates -, noutro ‘artigo de opinião’ publicado no DN e replicado em vários sítios, como é costume -, das vicissitudes e demoras da Operação Marquês, e acusa o Estado de ser «diretamente responsável por quase nove anos dos dez que, até hoje, durou». E em parte tem razão. 

Omite, contudo, que a sua defesa se tem distinguido por uma sucessão de recursos, incidentes de recusa de juízes e outros artifícios que o sistema permite e que concorrem, como é óbvio, para bloquear o processo, já ameaçado por prescrições próximas. Na prática, e se acontecerem, poderão poupar Sócrates à maçada do julgamento. Ou seja, ‘ganha na secretaria’.

Com contornos diferentes, mas vários pontos em comum, houve a novela do seu amigo Lula da Silva, reeleito Presidente do Brasil, após ser libertado no meio de um conjunto de prescrições e de incidentes processuais, relacionados com a Operação Lava Jato, do que resultou a anulação das condenações.

Foi um desfecho que, decerto, iluminou o ex-primeiro-ministro, não tendo sido por acaso que o Expresso titulou, em capa, que Falha do governo paralisa julgamento de José Sócrates, explicada pelo semanário com o facto de a lei do sorteio de juízes dos tribunais superiores continuar por regulamentar há mais de um ano. 

Claro que Sócrates chama ‘um figo’ a esta barafunda, desde logo pela oportunidade de voltar a ‘malhar’ na Justiça, culpando o sistema por mantê-lo refém de um processo há quase uma década. E até aproveita para ironizar com as ‘manobras dilatórias’ atribuídas à sua defesa.

Trata-se de um imbróglio jurídico e de um impasse, que o juiz de instrução Ivo Rosa não desfez, com a sua polémica decisão de isentar Sócrates da maioria dos crimes de que estava acusado, atribuindo-lhe outros pelos quais continua também a não ser julgado. Uma originalidade. 

 

Entretanto, Ivo Rosa não ficou parado. Candidatou-se a procurador europeu, enquanto aguarda a conclusão dos processos disciplinares que tem pendentes no CSM e que suspenderam a sua promoção a juiz desembargador. 

De caminho, ainda no papel juiz de instrução, deixou cair as principais acusações de corrupção e branqueamento de capitais imputadas a responsáveis da Octapharma, empresa para a qual Sócrates também trabalhou.

Ou seja, um após outro, os protagonistas dos processos mais mediáticos ficaram com a ‘folha quase limpa’. Por inépcia dos investigadores, calculismo das defesas, ou excesso de formalismo do magistrado? 

O certo é que esta realidade terá encorajado Manuel Pinho – também ex-governante de Sócrates – a confessar, no requerimento de abertura de instrução, que «cometeu, ao longo de vários anos, crimes de fraude fiscal, tendo ’embarcado’ num esquema global dentro do GES, em que os pagamentos de parte das remunerações e de prémios eram feitos ‘por fora’». Era ministro e recebia ‘por fora’… O desplante não tem limites. 

Por seu lado, Sócrates, tem fartas razões para estar grato ao juiz de instrução, não só por tê-lo ‘aliviado’ das acusações mais gravosas de corrupção passiva, como pela controvérsia então gerada, legitimando novos recursos e incidentes.

Em suma: paradoxalmente, faz sentido que Sócrates proteste contra os atrasos da Justiça – desempenhando, a preceito, o papel de ‘vítima’ -, enquanto a defesa se socorre de todos os ‘alçapões’ existentes na lei que prima pelo excesso de garantismo.

Independentemente do seu intrigante modo de vida e das culpas que possa ou não ter ‘no cartório’, Sócrates solta o ‘animal feroz’ e defende-se nos vários tabuleiros, desde o politico ao judicial. 

 

Esta incapacidade da Justiça de julgar em tempo útil, seja na criminalidade mais sofisticada seja, por exemplo, nos processos administrativos e fiscais, tem vindo a aprofundar uma crise que corrói a confiança nas instituições, abalando os próprios alicerces da democracia.

Em março do ano passado, a presidente do Supremo Tribunal Administrativo e Fiscal, Dulce da Conceição Neto, considerava uma «vergonha» o ponto a que chegou a demora na Justiça, reconhecendo haver processos pendentes há 10 ou 20 anos…

É um estado de coisas que ilustra como é que um recurso do MP demora ano e meio a subir à Relação ou por que se generalizou a convicção de que Sócrates, Pinho, Salgado ou outros arguidos ‘poderosos’ jamais serão julgados.

Numa entrevista recente, Paula Teixeira da Cruz, antiga ministra da Justiça, defendia que «o ataque às manobras dilatórias deve ser uma prioridade», lamentando não ter conseguido ver aprovado o crime de enriquecimento ilícito.

Num Estado de Direito que se preze, nem a Justiça pode equivaler a um labirinto de incertezas – consoante o perfil do juiz ou do arguido – nem ficar à mercê dos expedientes das defesas, que se aproveitam das teias da lei para adiar os processos até à sua prescrição.