Uma cruel desilusão

As sessões do cineclube tinham para mim qualquer coisa de especial, de quase transcendente. Foi um sentimento que nunca mais vivi. Aí se misturava o interesse cultural, o gosto específico pelo cinema e uma certa militância política.

Como muitos jovens da minha geração, tive os meus tempos de cinéfilo. Era sócio do Cineclube Universitário de Lisboa, que semanalmente – julgo que aos sábados, a meio da tarde – organizava uma sessão de cinema numa sala de Lisboa. Como o clube não nadava em dinheiro, procurava alugar salas baratas – e, assim, as sessões decorriam em cinemas já no limiar da decadência, como o Paris, na Estrela, ou o Imperial, na Avenida Almirante Reis.

Antes de as portas do cinema se abrirem, juntava-se no exterior uma pequena multidão – e recordo a ansiedade com que eu vivia esses momentos. As sessões do cineclube tinham para mim, na época, qualquer coisa de especial, de quase transcendente. Foi um sentimento que nunca mais vivi.

Aí se misturava o interesse cultural, o gosto específico pelo cinema e uma certa militância política – pois o cineclube tinha uma orientação de esquerda e os filmes que escolhia tinham uma mensagem ‘social’.

Lá vi quase todo o cinema italiano, o neorrealismo e o pós-realismo. Vittorio de Sica, Rosselini, Antonioni, Fellini, Zurlini, Pasolini, Visconti, etc., conheci-os (através dos filmes, bem entendido) nessas memoráveis sessões.

 

A par dessa frequência cineclubista, aproveitava as idas a Paris onde o meu pai vivia para me meter na Cinemateca do Palais de Chaillot a conhecer os clássicos. Foi lá que vi pela primeira vez O Couraçado Potemkine e o Citizen Kane.

De todos os filmes que presenciei nesse tempo, o que mais me impressionou foi o Rocco e Seus Irmãos, de Visconti. Retrata a vida e o drama de uma família pobre emigrada para uma grande cidade (Milão), onde os sentimentos são levados ao extremo: a solidariedade familiar, o amor fraternal, a paixão, a raiva, o ciúme, o sabor da glória e do fracasso. Georges Sadoul chamou-lhe «uma obra-prima falhada» e eu insurgi-me: falhada porquê?

 

Além das sessões no cineclube, ia a outras sessões de cinema, em salas de reprise ou de estreia. E quando chegava a casa escrevia nas costas dos bilhetes (que tinham cerca de metade da superfície de uma nota de banco) um resumo do filme e uma pequena crítica. Aí me habituei a ser muito sintético.

É escusado dizer que foram sobre cinema os primeiros textos que publiquei na imprensa.

Vem tudo isto a propósito de um filme passado recentemente na TV: La Dolce Vita, de Federico Fellini.

Nunca fui um entusiasta de Fellini. Tocava-me mais o realismo do que o alegórico ou o fantástico, de que ele usava e abusava. Mas rendia-me à crítica que o punha nos píncaros. A Doce Vida era considerado um dos filmes mais importantes da década de sessenta e mesmo do século XX, e havia quem o colocasse entre os melhores filmes de todos os tempos. Quem era eu para o contestar?

 

Supostamente, o filme é uma crítica à sociedade italiana do pós-guerra. Pretende retratar uma classe média-alta decadente, hedonista, superficial, incapaz de comunicar. A personagem central é um jornalista especializado no jornalismo mundano (Marcello Mastroianni), que vai circulando por Roma – e através do seu percurso observamos os podres de um grupo de gente frívola, devassa e sem objetivos.

Esta será a intenção do filme – ou, pelo menos, a que os críticos lhe atribuem.

Mas o que eu vi foi outra coisa: foi um conjunto desconchavado de cenas sem ligação umas com as outras. As sequências sucedem-se sem qualquer nexo lógico, numa amálgama ininteligível. Fellini adora os cortejos de figuras fantasmagóricas, grotescas, surreais – e esses desfiles, a pé ou de carro, repetem-se ao longo do filme, sem nenhuma justificação. Tudo aquilo me pareceu gratuito, sem princípio, meio e fim, sem uma linha narrativa. Dir-se-á que o surrealismo é mesmo assim. Mas na arte interessam-me pouco os rótulos: uma obra ou me emociona ou não. 

 

Uma das cenas icónicas da película mostra a atriz sueca Anita Ekberg – que representa o papel de uma estrela de cinema americana de visita a Roma – a entrar descalça na Fontana di Trevi e a banhar-se debaixo de uma cascata. Ora, Ekberg é metida no filme a martelo, a sua presença não tem que ver com nada, a sua participação só pode ter um motivo: o desejo lúbrico de mostrar um belo animal humano, de abrilhantar as imagens com um esplêndido corpo de mulher.

Se a minha opinião sobre Fellini não era brilhante, passou a ser péssima. Depois das cenas carnavalescas que ocupam todo o filme, a imagem final é um rosto de criança. A ideia é clara: o contraste entre a depravação de uma classe sem moral, e a pureza de um ser ainda não corrompido pelos vícios da sociedade. Ora, essa ‘mensagem’, além de demasiado óbvia, não chega para justificar um filme. 

O grande cinema italiano, para mim, é o que tem drama, verdade, tragédia, o que nos toca o coração e a alma, O Fellini deste filme, como o de 8 ½ e o de Amarcord, procurando retratar a decadência, acaba por ser contagiado por ela.