A Igreja Católica assumiu as suas responsabilidades. E nós, os cidadãos?

Será que teremos a coragem e a vontade política necessárias, enquanto comunidade nacional, de seguir o exemplo da Igreja Católica portuguesa e ‘Dar a Voz ao Silêncio’ também às cerca de 200 mil crianças que se estima serem abusadas em Portugal? 

Bernardo Ribeiro da Cunha, Diplomata

I.

O relatório final ‘Dar Voz ao Silêncio’ (DVS), elaborado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI), teve por objetivo «o estudo dos abusos sexuais de crianças por membros e/ou colaboradores da Igreja, entre 1950 e 2022, para um melhor conhecimento do passado e adequada ação preventiva e de intervenção futura» (DVS, pág. 21), tendo resultado de uma decisão da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) de «busca intransigente da clareza que queremos para esta questão». A CEP atribuiu à Comissão Independente «plena autonomia e absoluta independência para a conceção e o planeamento dos trabalhos», que foram conduzidos com «total idoneidade profissional, e em profundo respeito pelo anonimato das pessoas vítimas e pessoas alegadamente abusadoras, vivas ou entretanto falecidas» (DVS, págs. 61 e 62).

O relatório refere que «a amostra final contou, assim, com 512 testemunhos» (pág. 140) recolhidos anonimamente – «o inquérito não continha quaisquer perguntas sobre a identidade… da pessoa vítima ou sobre a identidade da pessoa abusadora» (DVS pág. 133) – através de chamadas telefónicas, pesquisa na imprensa, entrevistas presenciais, inquérito online, e análise dos arquivos históricos da igreja (DVS, págs. 24 e ss).

Dos 512 testemunhos, «foram enviados 25 casos para o Ministério Público», onde eram referenciadas pessoas «vivas e [que] mantêm as suas funções religiosas» (DVS, págs. 24 e 108). Destes 512 testemunhos foi estimado, de acordo com a tabela infra, «um número potencial de 4 815 vítimas, valor que resulta da soma dos testemunhos individuais (512) com esta estimativa (4303)» (DVS, págs. 200 e ss).

 

II. 

Esta extrapolação levanta algumas reservas, especialmente as linhas que mencionam as centenas de casos. Na linha ‘Todo o colégio’ o exagero é manifesto, porque admitir que todos os alunos/as de determinado colégio eram abusados sem haver exceções não é plausível. Por sua vez, na linha ‘Centenas’, é necessário referir que o facto de o abusador ouvir no confessionário dezenas ou centenas de raparigas não quer dizer que tivesse abusado de todas. 

Na pág. 77 do relatório refere-se que «os dados que vêm a ser conhecidos expressam sempre uma pequena parte da realidade existente, no que vários autores descrevem como ‘efeito iceberg’… Os números são variáveis, mas nas situações de abuso sexual de crianças estima-se que a parte conhecida do fenómeno seja apenas 20 a 30% da totalidade do ocorrido, sendo que a restante permaneça, por vários fatores descritos, como omissa ou desconhecida no momento vivido e, de igual modo, ao longo do tempo». Fazendo as contas em relação à amostra de 512 testemunhos, obteríamos um total, respetivamente, de 2.560 casos para a percentagem de 20%, e de 1.707 para a percentagem de 30%.

O número mais realista de potenciais abusadores deve, assim, encontrar-se entre estes dois algarismos, nomeadamente em torno dos 2.135. Efetivamente, para se atingir os 4.815 casos potenciais significaria que apenas cerca de 10% das vítimas se teriam apresentado, tendo cerca de 90% mantido o silêncio, percentagens que se afastam muito das estimativas mencionadas no próprio relatório.

Salienta-se que esta correção ao número de potenciais abusadores na Igreja Católica em nada diminui o valor do relatório em qualquer aspeto, nomeadamente no que diz respeito à necessidade de Dar Voz às Vítimas, face ao horror que experimentaram. A existência de um só caso justificá-lo-ia por inteiro. 

 

III.

Um tema importante abordado no relatório é o risco de generalização a toda a Igreja Católica, enquanto instituição, da exposição dos casos de abusos: «Comissão sempre distinguiu o todo da parte, a árvore da floresta: as pessoas abusadoras, membros da Igreja Católica portuguesa ou seus colaboradores diretos, constituem uma franja reduzida de um grande universo em que a esmagadora maioria dos seus membros nunca praticou crimes desta ordem. O estigma negativo que pode atingir todos eles, membros saudáveis de uma estrutura de grande significado e implantação na sociedade portuguesa, como é a Igreja Católica, constitui, porém, um dano ético colateral sobre o qual existiu consciência crítica e que, através da intervenção pública, sempre procurámos contrariar». (DVS, pág. 155).

Neste contexto, vale a pena sublinhar a atitude da maior parte das vítimas que, embora arcando com um terrível sofrimento devido às «marcas devastadoras que o abuso sexual deixou nas suas vidas» (DVS, pág. 100), também souberam distinguir Judas dos restantes apóstolos: «Ainda hoje a maioria dos sobreviventes continua a declarar-se católico – portanto, com ligações efetivas a essa religião» (DVS, pág. 167).

Pelo gráfico que consta da pág. 380 do relatório, pode concluir-se que o total do clero português ronda atualmente as 8.100 pessoas. Atendendo a que a Comissão Independente identificou 25 casos de abusos onde eram referenciadas pessoas «vivas e [que] mantêm as suas funções religiosas» (DVS, pg. 24 e 108), acrescentando os 75% do «efeito iceberg» (DVS, pág. 77), obtemos um total de cerca de 44 casos, o que significa uma percentagem de 0,54% de abusadores ativos na Igreja Católica portuguesa. 

Embora baste um único caso para nos causar horror e escândalo, não pode deixar de concluir-se que este número é bastante reduzido, não havendo base objetiva para generalizações, como a própria Comissão reconhece. 

 

IV.

Horror e escândalo provocam também os dados sobre a prevalência de abusos de menores de 18 anos na sociedade portuguesa em geral: «Os abusos de crianças (menores de 18 anos) são mais comuns do que se pensa. Dados de uma metanálise destacam 18% de prevalência na população feminina e 8% na masculina. Englobam diversas situações atualmente previstas na lei. Em geral, predominam as vítimas raparigas sobre os rapazes, e a idade mais comum do abuso é a pré-adolescente. A maior percentagem acontece de forma continuada, em espaços físicos de socialização da criança, sobretudo na família. São cometidos por abusadores maioritariamente masculinos, muitos fazendo parte do seu universo relacional prévio, contribuindo assim para a sua perpetuação». (DVS, pág. 22). 

A Comissão Independente homóloga, criada em França, debruçou-se sobre este tema, contrariamente à Comissão portuguesa: «A equipa francesa trabalhou adicionalmente sobre estas «violências sexuais na população» com uma amostra por quotas de 28 010 pessoas, interrogadas pela Internet. Esse facto permitiu fazer comparações relevantes entre os abusos na Igreja e outros lugares da infância e a extrapolação da sua prevalência para a totalidade da população francesa. Da amostra portuguesa não podem, assim, fazer-se quaisquer extrapolações para o universo em geral». (DVS, pág. 136-7)

Isto significa que se encontra por estudar o fenómeno dos abusos de menores na população portuguesa em geral, pelo que a Comissão, «tendo em conta a sociedade portuguesa no seu todo, [e] a consciência de que os abusos sexuais de crianças excedem em muito os praticados na Igreja Católica portuguesa, constituindo estes apenas uma parte de um todo de expressão bastante mais significativa», propôs «a criação de uma estrutura semelhante à da Comissão Independente, com novos membros, bem mais alargada e com outros meios de intervenção, com vista a estudar a situação dos abusos sexuais de crianças em geral, na comunidade. À semelhança dos Inquéritos de Vitimização, tudo parece apontar para que tal iniciativa, desejavelmente do Governo da República, possa vir a caber ao Ministério da Justiça, seja pela natureza das suas atribuições e competências, seja pela sua natural comunicação com as entidades públicas sobre quem venha a recair a responsabilidade do prosseguimento da investigação, já em sede criminal, dos dados que assim venham a ser recolhidos». (DVS págs. 450-451).

Qual o significado concreto dos números de abusos de menores para o geral da população portuguesa mencionados pela Comissão Independente? A população portuguesa de 5 a 18 anos alcançava em 2021 um total de 1.451.838 pessoas (Pordata.pt). Dividindo ao meio para diferenciar os sexos, obtêm-se 725.919 para cada lado. Calculando as percentagens respetivas, 18% para raparigas e 8% para rapazes, resulta o número chocante de 130.665 meninas abusadas e 58.073 meninos abusados. O total, embora se trate de um número aproximado, até porque se trata de uma estimativa e a diferença entre rapazes e raparigas não é exatamente de 50%, alcança cerca de 188.738 crianças abusadas de ambos os sexos em Portugal.

Será que teremos a coragem e a vontade política necessárias, enquanto comunidade nacional, de seguir o exemplo da Igreja Católica portuguesa e ‘Dar a Voz ao Silêncio’ também às cerca de 200 mil crianças que se estima serem abusadas em Portugal? 

 

V.

Uma referência final ao contexto histórico dos abusos, também mencionado no relatório: «Se há unanimidade sobre a dramática existência milenar da situação do abuso sexual de crianças, outrora sentido como aceite em certos contextos, hoje os valores dominantes sobre a infância obrigam a olhá-la de uma outra maneira, não a tolerando e penalizando-a criticamente (do ponto de vista individual, social e, mais recentemente, jurídico)». (DVS, pág. 73).

Neste âmbito, é fundamental recordar a contribuição do Cristianismo para a mudança de mentalidades, valorizando a inocência das crianças e condenando atos que violentassem os mais pequenos e frágeis, cujo exemplo mais significativo é talvez esta passagem do Novo Testamento, em que Jesus Cristo diz aos seus discípulos: «É inevitável que haja escândalos, mas ai daquele que os causa! Melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem ao mar, do que escandalizar um só destes pequeninos». Lucas 17:1-2.

É interessante verificar que a condenação que a sociedade portuguesa, como um todo, faz dos abusos de menores – tanto no caso da Casa Pia como no atual – revela, embora não de forma consciente, quanto está marcada por princípios cristãos. 

 

Conclusão

O relatório propõe uma série de sugestões e recomendações destinadas à Igreja Católica e à Sociedade em Geral, que espero venham a ser rapidamente implementadas, entre as quais se destacam:

– Elaborar protocolos entre a Igreja e o Ministério Público para a participação de casos de abuso; bem como com os Serviços de Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde, para atendimento prioritário das vítimas em consultas de Psiquiatria e Psicologia;

– Valorizar o lema ‘tolerância zero’ aos abusos sexuais de crianças por membros da Igreja, reiterado muitas vezes pelo Papa Francisco;

– Sinalizar atual e futuramente as pessoas abusadoras, por forma a evitar a continuidade de novos abusos sexuais e pregar o dever moral de denúncia, por parte da Igreja, às entidades competentes; 

– Identificar espaços físicos que facilitem a existência endémica de abusos sexuais de crianças por parte de membros da Igreja, cuja existência deve ser revista e mesmo abolida como no caso dos confessionários fechados onde não há uma separação física entre o sacerdote e o menor; e

– Criar uma estrutura semelhante à da Comissão Independente, com novos membros, mais alargada e com outros meios de intervenção, com vista a estudar a situação dos abusos sexuais de crianças em geral, na comunidade. Esta iniciativa deveria caber ao Governo da República e situar-se no Ministério da Justiça, seja pela natureza das suas atribuições e competências, seja pela sua natural comunicação com as entidades públicas sobre quem venha a recair a responsabilidade do prosseguimento da investigação criminal dos dados que vierem a ser recolhidos.

De entre as várias ideias apresentadas pela Comissão Independente, apenas a de «rever a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica» (DVS, pág. 454) me inspira reservas, na medida em que parece impossível de implementar: por um lado, a pessoa que se vai confessar não está obrigada a identificar-se diante do sacerdote e, por outro, os abusadores deixariam pura e simplesmente de se confessar caso soubessem que o sigilo não seria respeitado.

Bernardo Ribeiro da Cunha

Diplomata