Paparazzi

A palestra de Gouveia e Melo à tripulação do Mondego foi filmada à distância

A propósito da insubordinação no navio Mondego, ouvi vários comentadores dizer que o chefe do Estado-Maior da Armada tinha dado uma «reprimenda em público» aos marinheiros sublevados, sujeitando-os a «uma tremenda humilhação».

Os próprios advogados bateram na mesma tecla, afirmando que os militares estavam «psicologicamente afetados» por esse puxão de orelhas em público.

Ora, nem os militares insubordinados levaram uma ‘reprimenda’, nem foi ‘em público’.

Estranho que os comentadores não soubessem que os marinheiros sublevados não estavam presentes na cerimónia, e, sobretudo, que não tenham reparado que as imagens mostradas pela RTP eram filmadas de longe e não captadas no local. 

Nenhuma câmara nem nenhum microfone estavam no convés do navio.

Os cameramen atuaram como os paparazzi: filmaram de longe e captaram o som com microfones de longo alcance.

E isso era fácil de percecionar, pois as imagens não eram nítidas e o som era defeituoso, tanto assim que foi necessário recorrer a legendas.

Como foi possível ninguém se aperceber disto?

Julgo que o almirante fez o que devia fazer: ordenou um inquérito, foi ao local, entrou no navio e falou diretamente à tripulação sobre o ato de insubordinação ali ocorrido.

Falou aos marinheiros olhos nos olhos.

Note-se que as sublevações na Armada são relativamente frequentes e não só em Portugal. 

E têm geral a protagonizá-los, como agora, sargentos e soldados. 

Quem não conhece O Couraçado Potemkine, de Eisenstein, o filme mais icónico sobre a revolução russa?

E entre nós, além de outros episódios, temos a revolta dos marinheiros de 1936, quando três barcos de guerra portugueses se revoltaram para se juntarem aos ‘vermelhos’ na guerra civil de Espanha.

A infiltração de militantes comunistas na Armada é uma tradição antiga, e neste movimento pode muito bem estar o dedo do PCP.

Duvido que aqueles militares tenham atuado isoladamente, por sua iniciativa; e é notório que não foi um ato espontâneo mas sim uma ação organizada.

Recorde-se, ainda, a missão que estava em causa: vigiar um navio russo…

Pode ser só coincidência; mas é uma grande coincidência.

Não vale a pena bater mais nos homens: com raras exceções, toda a gente concorda em condenar o que fizeram.

O respeito pela cadeia hierárquica é a base de funcionamento de um exército.

Um trabalhador pode fazer greve; um soldado não pode recusar-se a combater.

Se a hierarquia falha, se a desobediência se perde, a pirâmide desmorona-se.

Como podem soldados correr para a morte, ao assalto das posições inimigas, senão na base de uma disciplina férrea?

Por isso, na tropa, a desobediência é um crime grave.

Isto é o b-a-ba, e não adianta insistir neste ponto.

Menos óbvio é o que já está a passar-se nos bastidores da corrida às próximas presidenciais, nas quais Gouveia e Melo será um candidato natural.
E eventualmente imbatível.

Como dizia há dias com graça Rodrigo Moita de Deus, Gouveia e Melo é «o Cavaco com a farda do Eanes».

E os portugueses gostam deste tipo de líderes, com a imagem de antipolíticos.

Que não parecem mover-se por objetivos partidários mas por objetivos nacionais.

Se concorrer, julgo que o almirante tem a vitória garantida.

Fala-se em Pedro Passos Coelho, em Marques Mendes, em Augusto Santos Silva, mas nenhum destes conseguiria batê-lo.

Passos Coelho ainda tem muitos anticorpos e julgo que não quer ser candidato; Marques Mendes quererá sê-lo, seguindo a trajetória de Marcelo Rebelo de Sousa, mas é demasiado político; Santos Silva não conseguiu na presidência da Assembleia da República situar-se acima dos partidos e tem hoje a imagem de um homem de fação.

Gouveia e Melo nunca teve partido, não tem de olhar aos interesses políticos ou económicos mas apenas ao interesse nacional, é disciplinador, direto e frontal, corta a direito sem olhar a quem, tem autoridade. 

Dizem que Marcelo Rebelo Sousa não veria com bons olhos ter Gouveia e Melo como sucessor.
Não faço ideia se é verdade, nem percebo que isso lhe interesse.

Só nos faltava agora uma guerra entre o Presidente da República e o seu putativo sucessor, que ainda por cima é seu subordinado como chefe de uma arma.

É certo que Gouveia e Melo não subiu ao cargo de forma linear.

Para ele ser chefe da Armada, houve que despedir o anterior, num processo que não foi bonito.

É uma mancha no seu currículo.

Mas o povo já mostrou que liga pouco a isso.

Também António Costa não subiu à liderança do PS com lisura, portou-se mal com o ‘camarada’ António José Seguro, e o país deu-lhe uma maioria absoluta.

Uma coisa é certa: a insubordinação no Mondego não teve só que ver com problemas técnicos ou de segurança no navio: teve motivações políticas.

Quais? Só o tempo o poderá esclarecer; ou os líderes da revolta.

Mas é muito difícil acreditar que esta história não tenha visado pôr em causa Gouveia e Melo e afetar o seu futuro.