O homem que talvez tenha morrido de costas

Começou a correr e a cerca de quatro metros da fasquia fez uma curva ligeira e voou de costas deixando bocas abertas de espanto

Não sei se se voa para a morte. Afinal ninguém regressa de lá para contar, não é? Claro que se eu agora for à varanda e me lançar no vazio tenho um percentagem de ir desta para melhor (será mesmo melhor?) mas não é no voo que morro é quando as minhas ossadas esbarrarem no chão lá em baixo, frente ao Sado, e umas poucas de vísceras se esmagarem obedecendo com rigor à velha Lei de Newton. Estou certo de que se alguém morreu voando esse alguém tinha alma de pássaro e sabia todos os segredos do verbo voar como Richard Douglas Fosbury que decidiu partir há pouco para essa planície onde o espaço é suficientemente infinito para que nele caibam todos os anjos. Ou então ultrapassou voando de costas sobre a fasquia da Senhora da Pensão da Vida aterrando do outro lado num daqueles colchões que, na Cidade do México estavam à sua espera como se fossem fiapos de algodão. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, título que só por si já é um romance, Machado de Assis dizia que era preferível cair das nuvens do que de um terceiro andar. Mas pode dizer-se sem fugir grandemente à verdade que naquele dia 20 de outubro de 1968 Dick caiu das nuvens em cima da medalha e ouro olímpica do salto em altura. E de uma maneira que muito poucos tinham visto até então.

A técnica que Fosbury aplicou nessas Olimpíadas ganhou o seu nome: Fosbury Flop. Até então a prática estava na utilização do sistema de rolamento ventral que já viera tomar o lugar do salto-de-tesoura tão primitivo que já começava a parecer tirado de um filme de Buster Keaton. Nessa tarde de outubro todo o mundo assistiu um daqueles acontecimentos que ficam presos na memória como se tivessem sido condenados às caldeiras de Pêro Botelho. Dick começou a correr em direção à fasquia e aí a quatro metros de iniciar o salto fez uma ligeira curva antes de se erguer de costas ultrapassando os 2,24 metros, dois centímetros acima do seu compatriota Ed Caruthers e quatro acima do soviético Valentin Gavrilov. Foi definitivamente maravilhoso. E de tal forma encantador e fascinante que nos Jogos Olímpicos que se seguiram, em Munique-1972, 28 dos 40 atletas que participaram na prova de salto em altura imitaram Fosbury. Dick dera um passo para o futuro e já não havia volta atrás. Hoje não há mais quem se arrisque a regressar ao rolamento ventral. Afinal ficou comprovado que o Fosbury Flop era muito mais eficaz e que só através dele se poderiam superar marcas até então incríveis.
 
Bom, se pensam que Dick resolveu assim, de um momento para o outro, dar aquela voltinha sobre si mesmo e passar de costas sobre a fasquia em direção ao ouro olímpico estão muito enganados. Apesar de ter nascido em Portland, no Oregon, capital de um Estado com uma população de madeireiros mais do género de Paul Bunyan do que propriamente de um trinca-espinhas com 1,93 que parecia estar à beira de se desmanchar a cada movimento mais brusco, o jovem Fosbury não deixou que o seu Flop fosse obra do acaso. Com 16 anos, a estudar em Medford, fazendo parte da equipa desportiva da universidade, a ideia de alterar por completo a forma como abordava a fasquia na altura de se preparar para voar sobre ela bailou na sua cabeça com uma teimosia notável. Não teve pejo de avisar o seu treinador que considerava o Método Straddle (rolamento ventral) um embaraço completo para saltadores com uma planta física próxima da sua. E apesar de o treinador se ter estado completamente nas tintas para as amalucadas ideias de Dick, mal este se transferiu para a Universidade do Estado, em Corvalis, não tardou a impingi-las ao novo responsável pelas suas sessões de treino. Menos cabeça-de-mula do que o seu antecessor, Berny Wagner, o seu novo mestre, continuou a insistir para que Fosbury mantivesse o estilo clássico embora o deixasse praticar a sua criação com uma razoável dose de liberdade, algo que fez Dick tornar-se cada vez mais confiante no aperfeiçoamento do seu muito peculiar estilo.

Dick Fosbury morreu no último dia 12 de março com 76 anos. Talvez já não tivesse a elasticidade plástica para sobrevoar de costas um fasquia mesmo que esta estivesse apenas a um metro do chão. Em 2015, surgiu nos ecrãs um filme chamado Broken Arrows com banda sonora do DJ sueco Avicii fazendo trovejar a voz de Zac Brown. Logo no início o espetador é devidamente avisado ‘Inspired by a True Story’. A trama dá-nos um protagonista infeliz, um atleta que vive na cidade ficcional de Fairmont, na Florida, com a filha, numa autocaravana a cair aos pedaços. Mergulhado num ambiente de desespero e de alcoolismo, vai ser à custa da força de vontade da garotinha que conseguirá sacudir a desgraça dos ombros e chegar a campeão olímpico de 1968. «I will meet you by the witness tree/Leave the whole world behind». Dick sempre foi um solitário. Mesmo quando voava de costas.

afonso.melo@newsplex.pt