Manuel Alegre. A prosa e a prosódia do poeta do País Azul

A propósito da publicação de Toda a Prosa, um volume que reúne os romances, novelas e contos de Manuel Alegre, recordo o mais poderoso de todos os seus textos, Rosas Vermelhas, um hino à resistência. Ao fazê-lo limito-me a falar de algo que me ensinou: «Estou no meu posto!».

Manuel Alegre. A prosa e a prosódia do poeta do País Azul

O poeta quando embarca na prosa à proa do seu navio leva consigo o ritmo do mar. Chamem-lhe prosódia, se quiserem, eu não me importaria de lhe chamar ondulação, uma ondulação suave que pode encaminhar-nos para o encanto ou as vagas indomáveis da Senhora das Tempestades. Manuel Alegre reuniu num único volume aquilo que a editora D. Quixote resolveu resumir como Toda a Prosa. Não, não toda. Pelo menos para mim e estou aqui no papel de cronista e não de crítico pelo que aquilo que empilho em linha vale o que vale e talvez nem sequer valha muito. Não é fácil escrever sobre mestres e Manuel Alegre além de um profundo amigo que repartia com o meu pai as teias da fraternidade tem sido um mestre desde que me dediquei à profissão de escrever e mais cedo ainda antes do escrever sem profissão. Não, ninguém deixa de lado os sentimentos enquanto escreve. Não sei de música, não sei compor, por isso digo, de minha parte, que escrever é a melhor forma de interpretar os sentimentos. Olho para o livro que tenho em mãos com as suas 826 páginas e está lá tudo – Jornada de África; Alma; Cão como Nós; Rafael; o Miúdo que Pregava Pregos numa Tábua; o Homem do País Azul; Tudo É e não É; O Navegador Sentado, e mais e mais e mais… Milhões de palavras e, no entanto, faltam aquelas que na prosa do meu querido Manuel marcaram para sempre a minha vida desde a primeira vez que as li, uma lágrima encostada ao recanto do olho esquerdo porque eu leio sempre do lado esquerdo, teimando em não me correr pela face até que percebeu o verdadeiro sentido de liberdade e soltou-se como deviam soltar-se todas as lágrimas que costumamos fechar nos diques dos nós na garganta.

Manuel Alegre nasceu em Maio na terra que é dos meus e seus avós, Águeda transformada em Alma num dos seus romances, Águeda que para nós continuará a ser Alma por que é da sua alma que brotámos mesmo que em gerações diferentes antes que uma vertigem louca louca de betão começasse a invadir os lugares da nossa infância, da Venda Nova ao Adro, do Botaréu ao Campo da Feira, das lavadeiras do Sardão que tingiam a água do rio Águeda com sabão azul e branco ao frondo das árvores do Souto do Rio. Muitos morreram entretanto. Outros desistiram. Não é fácil manter a Alma numa terra sem alma. Foi com alma, muita alma, que lhe dei um dos últimos abraços no funeral do meu pai, seu amigo de oitenta anos. Perdeu-se nesse dia uma parte dele e um bocado gigantesco de mim. Mas mais ainda: perdeu-se tanto tanto daquela Alma que, quando nos juntávamos, fazíamos de conta que ainda existia, ignorando os assassinos silenciosos do cimento cujo coração bate ao ritmo dos guindastes. Manuel Alegre nasceu em Maio, mês das rosas. Foi ele quem escreveu: «Nasci em Maio, mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira de mim mesmo». Na minha casa, em Águeda, a casa dos meus avós, Casa de São Bernardo que o Paulo Sucena, outro dos irmãos do meu pai e seu companheiro de toda a vida, chama a Casa dos Conselheiros, a minha mãe faz nascer rosas-de-Santa-Teresinha que tingem a parede do lugar onde antigamente guardavam as carroças de um tom tão rosado que abre as portas de qualquer Primavera. Estarão lá, neste momento, a estender pétalas ao sol enquanto a capa azul-intenso que cobre as prosas do poeta do País Azul me ocupa a mesa de cabeceira numa releitura de tudo o que já tinha lido agora com uma visão provavelmente mais distante das coisas do mundo porque quando nos morre um pai sentimo-nos tão amputados de nós mesmo que deixamos de acreditar na verdade crua dos sentimentos.

 

Um início

Foi em 1965, clandestinamente, que Manuel Alegre deu a Portugal e à Liberdade a Praça da Canção, hoje nome do terreno no qual todos os sábados se juntam as vendedeiras de frutas e de legumes, ali a dois passos da Rua Vasco da Gama que todos conhecemos por Rua de Baixo e onde fica a casa da sua família. Foi em 1989 que se decidiu, finalmente, a dar-nos um livro de prosa pela primeira vez, Jornada de África (Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião). Camoneano por convicção intrínseca, independentemente da sua escrita, Manuel Alegre não escolheu o nome de Sebastião ao acaso. E tal como Fernando Pessoa quis anunciar a sua morte para que deixássemos de uma vez por todas de olhar para trás, sempre para trás, para que deixássemos de acreditar que alguém fará Portugal por nós e se ainda falta fazer-se Portugal teremos de ser nós a consegui-lo. Não sei quando li Praça da Canção, ou pelo menos pedaços de Praça da Canção passados de mão em mão de forma a driblar o lápis velhaco da censura e de bandarilhar com um requinte de Ordoñez a estupidez bronca da ditadura. Sei que li e não me esqueci mais. E fiz daquela frase a minha frase ou, se quiserem, uma bandeira de mim mesmo: «Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. De certa forma estava no meu posto». Em Maio de 1963 eu ainda não tinha nascido e não podia saber aquilo que o meu pai e muitos da sua geração tinham sofrido só pelo simples facto de serem capazes de dizer NÃO. E sim, NÃO com maiúsculas, não apenas não, assim pequenino quase como quem diz sim e não se atreve sequer a dizer talvez, um NÃO sonoro, um NÃO que fizesse tremer os alicerces de um Estado plenipotenciário, repressivo, cruel e até homicida. Quando fiz dessa frase a tal bandeira de mim mesmo era um tempo de guerra já sem guerra, já Manuel Alegre tinha sofrido as agruras das picadas entre Quipedro e Nambuangongo, já tinha escutado o rilhar da metralha e já aprenderam outra camaradagem diferente da que aprendera em Alma/Águeda, a camaradagem de acender, companheiro, o meu no teu cigarro. E libertara-se do exílio, outra forma de continuar no seu posto.

Foi em Alma/Águeda que aprendi o significado de solidariedade de camaradagem de amizade de cumplicidade. Aprendi-o no rio, no Fojo, no Redolho, nas arreias onde as lavadeiras estendiam os lençóis alvos a corar ao sol, como se dizia, aprendi-o por entre os milharais onde éramos capitães da malta como cantou um dia o Paulo de Carvalho que cantou igualmente que em Nambuangongo tu não viste nada desse tempo longo longo. Foi na poesia de Manuel Alegre que aprendi a mágoa da distância forçada – e que não se sabe quando ou se terá algum dia fim! – e como alegre se faz triste quando chove em pleno Agosto. Antes de Manuel Alegre publicar o seu primeiro romance, ainda demasiado marcado pela Guerra Colonial e por todos os minutos em que a morte espreita nas picadas, eu já tinha lido aquele que é, para mim, o mais perfeito dos seus romances. Porque o tamanho não importa, porque o espaço das linhas não tem significado, o que vale é o que se lê entre elas ou por dentro delas como se estivéssemos perante um palimpsesto e fôssemos obrigado a ir descascando todas elas uma a uma. «E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de rito e de ternura».

Foi precisamente aqui que comecei a ler a prosa de Manuel Alegre, eu que conhecia de cor tantos dos seus poemas porque o meu pai acreditava que havia sempre um poema para cada momento da vida e ensinou-se a recitar de um fôlego só todos os grandes poetas que nasceram neste País Azul que poderia ter sido ele próprio um poema escrito à beira-mar se não tivéssemos gastado a vida à espera, sempre à espera, continuamente à espera, infinitamente à espera. Lembro da Dona Manuela, tão amiga da minha avó Cândida, uma força e uma resistência poderosa num corpo tão pequeno, da sua voz que não admitia contraditórios, imagino que muita da coragem que o Manuel precisou sempre que esteve no seu posto tenha herdado dela, sua mãe, senhora das rosas vermelhas da manhã exata de cada Maio.

 

Poesia, prosa e prosódia

Não sei se a prosa de Manuel Alegre será mais biográfica do que a sua poesia, mas é indiscutível que reconhecemos traços da sua idiossincrasia em Alma, em A Terceira Rosa e em Rafael, sendo que em Alma se despe, por assim dizer, de uma forma mais impositiva como se se preparasse para mergulhar no Rio Águeda do Nunca Mais onde aprendeu a ser campeão de natação notoriamente medalhado, sobretudo quando veio a representar a Académica. Não sei se nesse tempo do seu próprio tempo chegou alguma vez a ver a luz em um país perdido mas ele foi sempre homem de acreditar e de nunca desistir porque o sol nascia exatamente no seu quarto.

 Ele abria a janela. «Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, a carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos». O caminho que Manuel Alegre escreveu foi o do contra. Contra essa tirania mesquinha, pobre, tirania de aldeia, tirania de aprendiz seminarista que nunca soube o seu lugar e por isso mandava dizer que havia um lugar para cada um mas que cada um devia ficar no seu lugar, sem esperanças, sem ambições, tirania da mediocridade de ser dono de uma cadeira até que a cadeira e quem nela estava sentado caíssem ambos de podre como os dióspiros lá da nossa aldeia que era Alma dentro de Águeda e Águeda era o mundo.

A prosa de Manuel Alegre está agora publicada num livro do qual uma frase se destaca: «A poesia está na prosa, a prosa na poesia, a vida é um ritmo, às vezes escrito, às vezes não». Antes de ser o poeta da resistência e da coragem, havia a ternura. Até o Che, com quem o poeta se cruzou nos seus tempos de Argel, dizia: «É preciso ser duro mas nunca esquecer a ternura». E é então que Manuel Alegre se torna no homem que vai para além do medo. «Eu estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas forças quando se acorda a meio da noite com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber se as traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo, responderá ao teu apelo torturado na noite». Águeda ficara longe. A sua e minha Águeda onde, no jardim dos meus avós, crescem as hidrângeas num tom de azul que por si só cansa e faz doer. De todos os pedaços de prosa de Manuel Alegre que aqui deixo nenhum está neste seu livro não novo mas completo. Ou incompleto porque a mais bela de toda a sua prosa é, para mim, claro!, afinal sou eu que escrevo, Rosas Vermelhas e abre a Praça da Canção.

Sim, quando o poeta mergulha na prosa as ondas da poesia erguem-se a seu lado e espalham-se pela areia da praia da prosódia. É como o ritmo estivesse, de repente, cansado de marcar o som da marcha das letras e procurasse libertar-se, nem que seja por momentos, da sua obrigação da métrica. «E, nessa hora (a mais solitária das horas), se conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se conseguires vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás:

– Bom dia!,

mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura».

O Manuel ensinou-me sobre os homens que gritam. Como Tom Joad, o personagem de Steinbeck, nas Vinhas da Ira, quando diz: «Nobody can’t o nothing against us because we are the people». Águeda ensinou-me a discernir os homens dos cobardes e destruiu a minha infância para sempre quando, no último mês de Setembro, regressei a Lisboa deixando lá o meu pai morto. E regressaram os meus fantasmas. Por isso é para mim difícil escrever sobre a prosa de Manuel Alegre porque está nela tanto do que aprendi na escola da verticalidade e da camaradagem, Maio ou não. Sim, a sua escola, os seus lugares, foram a escola e os lugares do meu pai o homem que me ensinou a luminosidade da poesia e que um homem não se vende, um homem nunca se vende, porque se não não é um homem, é um destroço, que me ensinou que a honestidade não se quebra, que a palavra vale o compromisso inatacável, que se pode andar por entre os canalhas com as costas direitas de um orgulho que nos nasceu no sangue, geração a geração como se estivéssemos simplesmente a cumprir um destino. O nosso Destino!

Gosto de dizer que estou no meu posto. No meu posto eterno contra a mentira, contra a indignidade, contra a injustiça, contra a miséria visceral dos homens. Fiz dessa expressão a minha bandeira. Já não há homens que nos venham buscar a meio da noite, mas continuam a existir os fantasmas. Em todo este seu livro, com matéria publicada em anos tão diversos, os fantasmas são combatidos com um som vindo do outro lado da parede e diz:

– Coragem!

«Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:

– Mãe!

A voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles».

Recordo a voz da Dona Manuela. Podia ser calma, mas não admitia contradições. Recordo o cheiro do rio e dos milharais e o campo onde os ciganos faziam fogueiras à noite e havia um cigano canhoto que tocava como El Lebrijano. Recordo o lodo nos pés quando entrávamos na água e os gritos do velho Bério que nos ensinava a nadar nas pistas mais perto das bancadas de cimento que eram aquelas em que não tínhamos pé. Ah! Pois! O rio era também o nosso posto. «Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto. No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.

Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela».

Escrevo estas linhas estando no meu posto. É essa a minha bandeira. A bandeira de ler estudar aprender e de ser útil barreira última do jornalismo e da crónica. Dizem alguns que o jornalismo se faz sem sentimento. Que a crónica se faz sem emoções. «Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago.  E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?» Se um dia, por acaso, como já me aconteceu, olharem em redor e perceberem que perderam a ternura, procurem-na nas páginas de um livro, acabarão sempre por reencontrá-la na poesia ou na prosa. Ou sobretudo na prosódia que é como o som do mar a subir e a descer areias, provavelmente o som mais antigo mais reconfortante e mais materno de toda a Humanidade. Fiquem só em silêncio escutando o fervilhar das ondas. Elas devolver-lhes-ão a ternura quando baixar a maré.