Enviaram-me um vídeo monstruoso. De tal maneira chocante, que não consegui vê-lo até ao fim. As imagens mostram, primeiro, uma vala aberta na terra, com o fundo coberto por pneus e alguns corpos estendidos sobre eles. Chega, depois, um soldado fardado com capacete e camuflado arrastando um homem vestido civilmente, de mãos atadas atrás das costas com uma fita plástica. O homem faz alguma resistência, mas o soldado empurra-o para dentro da vala. Ouvem-se, então, três tiros espaçados. Ao primeiro, o homem abre as pernas; ao segundo e ao terceiro fecha-as lentamente, como num rito de dor. E finalmente imobiliza-se. Chega mais um soldado arrastando outro homem. A cena repete-se: atira-o para dentro da vala, ouve-se um tiro e o homem deixa de se mexer. Trazem mais um homem. E outro. E outro. Sempre a mesma cena, terrível: o corpo atirado para a cova, um tiro, a imobilidade. Aí deixo de ver. Uns segundos depois percebo para que servirão os pneus: finda a operação, deitar-lhes-ão fogo e queimarão os corpos (alguns ainda certamente com vida).
Conhecemos as imagens dos campos de concentração nazis, os corpos descarnados, só pele e osso, como esqueletos em movimento, valas comuns cheias de cadáveres, fornos crematórios.
São imagens medonhas. Mas são em geral imagens paradas. Fotografias. Ora, aqui veem-se as pessoas vivas, os rostos aflitos, a saberem o que lhes vai acontecer. E depois a caírem na vala, de mãos atadas, desamparadas, sobre os corpos já mortos. E vimo-las a serem baleadas a frio, a morrerem à frente dos nossos olhos. É toda essa sequência de imagens de pessoas que começamos por conhecer vivas, a caminharem pelo seu pé, e que no fim são cadáveres, corpos inertes, que se torna insuportável de ver.
A legenda diz que se trata da execução de empreiteiros responsáveis pelo terramoto que atingiu a Turquia e a Síria no dia 6 de fevereiro. Os noticiários, de facto, deram conta dos mandados da prisão na Turquia contra mais de 100 construtores civis acusados de não respeitarem as normas em vigor e indiciados de homicídio por negligência. Mas não vi notícias sobre execuções.
Não é possível afirmar que estas imagens se reportem a isso. Pessoa amiga que vive ocasionalmente na Turquia negou-o mesmo taxativamente: diz que os fardamentos não são do Exército turco e que se tratará da guerra civil na Síria.
Uma coisa é certa: este vídeo tem obrigatoriamente de ser objeto de uma rigorosa investigação. A ONU ou seja lá quem for tem de apurar onde aconteceu isto e quem o ordenou. São atos hediondos, crimes contra a civilização, um regresso à barbárie praticado por um Exército regular.
No mesmo dia em que recebi aquele vídeo medonho, vi a desoras um filme sobre o enterro de Estaline. É uma montagem de cenas filmadas na altura, sem texto nem narrador. As imagens bastam-se a si próprias; o som limita-se a discursos de glorificação do líder gravados também no momento. Estaline é catalogado como «um génio», o «maior homem de todos os tempos», a «figura mais importante da humanidade», etc.
A encenação montada é gigantesca. O culto da personalidade é levado ao extremo. Acorrem a Moscovo delegações de todo o mundo, sobretudo de países comunistas; as coroas de flores são às toneladas; as filas para verem o corpo são a perder de vista: dão voltas e voltas e nunca se lhes vê o fim. Há muitas mulheres a chorar. Hoje, depois de sabermos o que foi o estalinismo, os seus crimes, faz muita confusão todas aquelas homenagens, aquela emoção, aqueles discursos.
Mas, pensando melhor, o que aconteceria se morresse hoje Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte, ou Xi Jinping, o Presidente chinês? A que encenações monumentais de pesar não assistiríamos?
Esta é uma característica dos países comunistas. Falam sempre em ‘coletivo’, dizem que os ‘camaradas’ são todos iguais, mas nunca na história da humanidade houve tamanho culto do chefe como nesses regimes. Basta pensar em Mao Tsé-Tung, em Kim Il Sung, em Fidel Castro, mais recentemente em Hugo Chávez. O líder é tido como insubstituível e a sua morte provoca um sentimento generalizado de orfandade. Como se fosse o fim do mundo. Nos países ocidentais, democráticos, nunca vimos espetáculos assim: gigantes como Churchill ou De Gaulle não tiveram funerais nem parecidos.
No vídeo que comecei por descrever, vê-se o pior do ser humano: o lado mais impiedoso, mais cruel, mais bárbaro, mais brutal da natureza humana; no filme sobre o funeral de Estaline vê-se o lado crente, ingénuo, do povo que acredita no que lhe dizem, que chora a falta de um herói que no fundo não conhece.
No vídeo, por detrás daquele horror, está um monstro que é preciso desmascarar; no filme, o povo homenageava outro monstro diretamente responsável por muitos milhões de mortes. Na nossa história recente têm-se construído mitos sobre montanhas de cadáveres. Importa esclarecer a que se reporta o vídeo, para tal não acontecer com mais um.