O gato e o rato

O Presidente falava, falava, falava, sem grande substância, para acabar por concluir que a sua ‘exigência’ em relação ao PRR até ajuda o Governo, que está naturalmente interessado na sua boa execução. No seu estilo florentino, Marcelo dava umas alfinetadas no Executivo – mas para o ‘ajudar’, claro está.

Na sexta-feira passada, respondendo aos comentários que falam de um mal-estar entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, e às notícias sobre grandes atrasos na execução do PRR – como este jornal alertava em manchete nessa mesma manhã –, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa iniciaram um périplo pelo país para verem in loco como está a avançar o dito plano.

Em vários locais do trajeto houve mini conferências de imprensa.

Em Mangualde, aconteceu um delicioso episódio que mais parecia um número de revista do Parque Mayer.

O Presidente falava, falava, falava, sem grande substância, para acabar por concluir que a sua ‘exigência’ em relação ao PRR até ajuda o Governo, que está naturalmente interessado na sua boa execução. No seu estilo florentino, Marcelo dava umas alfinetadas no Executivo – mas para o ‘ajudar’, claro está.

Em pé, a pouca distância dele, António Costa ouvia esta conversa com um sorriso trocista, como quem diz: «Sei muito bem onde queres chegar, pois conheço-te de ginjeira, mas não me apanhas!».

Um pouco atrás de Costa estava Mariana Vieira da Silva, com cara de Maria Madalena, e ainda mais atrás, mas ao centro da imagem, estava o ministro Costa Silva, com cara de pau.

Quando chegou a vez de António Costa falar, respondeu que as competências dele e do Presidente da República são claras, e que se este está atento ao PRR ele tem de estar dez vezes mais – pois se as coisas correrem mal é a ele e não ao Presidente que pedirão responsabilidades.

Esta cena ilustra na perfeição o estado atual da relação entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.

Durante muito tempo, Marcelo absteve-se de criticar o primeiro-ministro e o Governo, por todas as razões e por mais uma: precisava absolutamente dos votos dos socialistas para ser reeleito para um segundo mandato, pois os votos da direita, muito dividida, podiam não chegar aos 50%.

Além disso, Costa estava forte e Marcelo não o queria ter como adversário.

O primeiro-ministro mostrava uma capacidade invulgar para fugir aos momentos difíceis, mantendo a sua popularidade intacta.

Os problemas aconteciam, mas António Costa não era afetado por eles.

Ocorreram as mortes em Pedrógão, ocorreu o roubo em Tancos, houve graves problemas com ministros, mas Costa não tremeu.

Parecia um sólido carro cuja inércia bastava para manter a velocidade inalterável.

Mas em política há sempre um momento em que as coisas mudam.

E a partir daí tudo o que antes puxava para a frente começa a puxar para o lado ou para trás.

Ora, Marcelo Rebelo de Sousa percebeu exatamente o momento em que se deu o clic e António Costa deixou de andar a favor do vento para andar contra o vento.

Quando os casos e casinhos começaram a rebentar no Governo a uma velocidade estonteante, com secretários de Estado e ministros a demitirem-se em série e Costa mostrando-se incapaz de controlar a situação, percebeu-se a dada altura que o vento mudou.

E, aí, Marcelo achou que era a ocasião azada para mudar de atitude.

A primeira vez que notei isso foi quando disse à ministra Ana Abrunhosa que a chamaria à pedra se o PRR não fosse cumprido; e recentemente foi ao ponto de afirmar em entrevista à RTP que esta maioria nasceu «cansada».

Agora, Marcelo e Costa jogam ao gato e ao rato.

Marcelo passa-lhe umas rasteiras e manda umas farpas ao Governo; Costa faz -se de parvo e finge que não percebe; Marcelo ensaia outra provocação para ver como Costa reage mas este furta-se ao choque e chega ao cúmulo de dizer com estudado cinismo que nunca um Presidente e um primeiro-ministro se deram tão bem.

Marcelo sabe que está na mó de cima e que Costa ocupa a mó de baixo.

Sabe que pode atacar António Costa e que este não pode reagir, porque não está em situação de o fazer. Basta olhar para a sua queda nas sondagens.

Mas, se tudo isto se percebe, há uma pergunta que tem de ser feita: o que pretenderá Marcelo Rebelo de Sousa com isto?

Qual será o seu objetivo?

Marcelo é acusado por toda a direita, desde o início, de pôr a mão debaixo do Governo socialista, desiludindo os seus amigos políticos.

Ora, suponho que ele não quererá sair de Belém com este rótulo.

Não quererá deixar a Presidência da República com a esquerda no Governo e ele a ser visto como um dos responsáveis por essa situação.

Ser-lhe-ia, portanto, agradável que a direita ascendesse ao poder ainda durante o seu mandato – e com a sua ajuda.

Mas como?

Não está no estilo de Marcelo Rebelo de Sousa o confronto direto.

Ninguém espere, por isso, que ele entre alguma vez em guerra aberta com António Costa.

Mas ir-lhe-á atirando setas, procurando desgastá-lo, sangrá-lo lentamente.

E António Costa ir-se-á furtando ao confronto, fingindo que não percebe, mostrando às vezes algum incómodo mas não indo além disso.

Costa só atacará frontalmente Marcelo se se sentir perdido – e tiver de jogar tudo por tudo.

Até lá, vamos assistindo às manobras do gato para cansar e encurralar o rato.