Mulher de Boaventura Sousa Santos ‘inibia’ queixas das vítimas

A presença de Maria Irene Ramalho, mulher de Boaventura de Sousa Santos, na Comissão de Ética do CES inibia naturalmente as vítimas do professor de apresentarem queixa por assédio. As investigadoras que denunciaram o caso, em declarações ao Nascer do SOL, dizem-se confiantes de que processo de inquérito vai decorrer de forma limpa daqui para…

Por Felícia Cabrita e Maria Moreira Rato

Os factos de alegada conduta menos ética mencionados nunca foram apresentados aos órgãos do CES», disse o então diretor emérito do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, ao Diário de Notícias (DN). Tal aconteceu depois de a obra Sexual Misconduct in Academia (’Má Conduta Sexual na Academia’, em português) ter sido lançada em março, no Reino Unido, pela prestigiada editora académica Routledge.

Mas os aconselhamentos do professor para que as vítimas recorressem aos canais internos do CES para se queixarem levantavam um problema. O único destino para onde as denúncias poderiam ser encaminhadas seria a Comissão de Ética do CES, criada em 2017; acontece que desta Comissão fazia parte a mulher de Boaventura de Sousa Santos, Maria Irene Ramalho.

Tal facto era naturalmente inibidor de qualquer queixa conta Boaventura. Uma fonte da faculdade contactada pelo Nascer do SOL garante que conhece «uma mulher que se sentiu retraída e não se queixou». E adianta. «Como ela deve haver outras. Isso seria impensável!».

Aliás, três investigadoras, também elas vítimas de assédio moral e sexual do académico – e que criaram esta semana um coletivo de mulheres, procurando mais vítimas de Boaventura de Sousa Santos –, disseram ao Nascer do SOL que «não se trata de qualquer questão pessoal contra Irene Ramalho, mas de princípio». E acrescentam que seria «muito difícil para qualquer investigador da instituição confrontar o Boaventura de Sousa Santos sem sofrer retaliações».

 

A necessidade de criar uma Comissão Independente

Terá sido pelo facto de a esposa pertencer à Comissão de Ética do CES que o centro teve a necessidade de criar uma Comissão Independente. As três investigadoras, que vieram a público recentemente, solicitaram, numa carta enviada ao CES, a «garantia absoluta de sigilo às mulheres que queiram denunciar ou juntar provas a esse processo». E em declarações ao Nascer do SOL adiantaram: «Na quarta-feira recebemos uma resposta do CES que indica disposição para colocar a funcionar uma Comissão que atenda ao que consideramos essencial: total autonomia, independência e imparcialidade em relação ao CES; garantia de um ambiente de bom acolhimento e proteção das vítimas; garantia de sigilo absoluto para que as vítimas não sofram exposição indevida».

As alegadas vítimas também exigem «informações sobre os métodos de trabalho da comissão» e a «criação de mecanismos de denúncia públicos».

 

Ninguém esperava que o medo tomasse a Academia

O trio não está disposto a desistir. Até porque ninguém esperava que o medo tomasse conta da Academia: «Entendemos que tudo o que está a acontecer agora e o que passámos não pode ser em vão. É preciso mudar a cultura. E mudar a cultura é colocar as vítimas no centro desses procedimentos. Isso implica extrema cautela na composição da própria Comissão, que deve ter a participação de pessoas especializadas em questões de género, assédio e violência, e que seja composta preferencialmente por mulheres, com capacidade para a escuta acolhedora das vítimas». E explicam que «os mecanismos de escuta e tomada de depoimentos devem ser feitos com cuidado e dentro de um ambiente profundamente comprometido».

Segundo elas, o caminho só pode ser um e sem falhas. «Revivermos esse processo, agora, implica mexer em profundas camadas de dor. Tudo o que veio à tona, em si, já é traumatizante, mexe com sentimentos de vergonha, impotência, culpa, revolta, entre outros. Levar os casos à Comissão não pode resultar em processos de revitimização e retraumatização. Estamos a propor-nos reviver tudo isso e levar as nossas histórias à Comissão porque acreditamos que os traumas só podem ser superados em processos genuínos de verdade e reconciliação», mencionam. E dizem acreditar que o CES está à altura desse desafio, o qual implica também a necessidade de desenvolver «mecanismos de apoio psicológico às vítimas».

 

Um ecossistema de abusos em Coimbra

É de lembrar que outro dos visados nas denúncias das três mulheres é o antropólogo Bruno Sena Martins – designado na obra como «the apprentice» (‘o aprendiz’, em português) –, investigador do quadro do CES com esta alcunha por ter como tutor intelectual Sousa Santos. Myie Nadya Tom (uma das autoras do artigo indicado) acusa-o de uma conduta de agressão sexual, não especificando do que se trata. A investigadora ter-se-á queixado a uma terceira figura, ‘watchwoman’ (em português, ‘sentinela’), a qual terá ignorado a denúncia. Mas Tom já tinha acusado Sena Martins nas redes sociais, em janeiro de 2019, tendo este apresentou queixa contra ela por difamação.

Por enquanto, as investigadoras estão a reunir uma série de provas. «Entendemos que nossas histórias permitem qualificar a existência de um ecossistema de abusos que permitirá identificar outras pessoas, ligadas a equipas do professor Boaventura, que eram estruturantes na reprodução de práticas abusivas. Nas situações que estamos sistematizando, Bruno Sena Martins não aparece como agente direto de situações de abuso ou assédio em relação a nós; contudo, como o artigo As paredes falaram quando mais ninguém podia relata, beneficiou-se de um regime de desigualdade de género que também sustenta o sistema de abusos que queremos denunciar», salientam as mesmas investigadoras.

Neste momento, preparam um documento para entregar ao CES a explicar como toda uma rede instalada na universidade se protegia. «Nas situações que estamos sistematizando, e que pretendemos apresentar à Comissão, a investigadora coordenadora Maria Paula Meneses [a ‘sentinela’] desempenha um papel estruturante na reprodução de práticas abusivas. Mais detalhes apresentaremos à Comissão», afirmam as três mulheres ao Nascer do SOL, evidenciando que «é preciso quebrar ciclos de normalização do abuso». «As vítimas não podem sentir-se confortáveis a apresentar as suas histórias, a reviver os abusos, no mesmo espaço onde esses abusos estavam normalizados, por muito idóneos sejam os professores escolhidos» – adiantam. «Repudio totalmente essas imputações porque não me revejo nesses comportamentos», diz Maria Paula Meneses ao Nascer do SOL.

 

Casos referem-se a período de duas décadas

«Os casos apresentados até ao momento reportam a situações ocorridas entre 2000 e 2019. Quando a Comissão de Ética do CES foi criada, em 2017, nenhuma das visadas considerou possível mover acusações desta dimensão a uma estrutura recém-criada e endógena», explicam as investigadoras, acrescentando que «algumas das vítimas estavam fora do CES, em processo de recuperação, e qualquer menção a esses episódios gerava nelas um medo muito grande de serem descredibilizadas, atacadas, e isso causar ainda mais danos às suas carreiras».

As reações provocadas pela publicação de Má Conduta Sexual na Academia deram fôlego a estas vítimas. «Até à sua publicação, não imaginávamos que fosse possível que uma estrutura interna ao CES tivesse condições para enfrentar o diretor-fundador e proteger de forma adequada as vítimas. Neste momento, acreditamos que é possível dar um voto de confiança ao CES e estarmos vigilantes no processo, porque precisamos de um ambiente de confiança para apresentar nossas histórias», afirmam.

Adiante-se que, na semana passada, o CES declarou ao Nascer do SOL que pretende «averiguar a ocorrência de eventuais falhas institucionais e/ou condutas inadequadas através da Comissão Independente que está a ser constituída, e trabalhar rapidamente na clarificação e melhoria dos instrumentos existentes para a prevenção e combate a todas as formas de assédio».

 

Caminho dos tribunais não é o escolhido

O caminho dos tribunais não é o escolhido. «Neste momento, não faz parte das nossas estratégias a persecução penal. Como dissemos, estamos dando um voto de confiança ao CES. No momento certo, se a Comissão avançar os seus trabalhos de forma rigorosa, independente e comprometida com os direitos das vítimas, pretendemos apresentar pedidos concretos de reparação, compensação e de não repetição, que contemplem os nossos casos», concluem as investigadoras, que também acusam Boaventura de ‘fraude académica’.

Boaventura de Sousa Santos está cada vez mais encurralado. As denúncias aumentam. De pouco serviu ao académico tentar colocar o caso no campo político, como se se tratasse de uma cabala. Em declarações ao Diário de Notícias, o professor, assumidamente marxista, disse ser alvo de uma campanha por pertencer ao grupo que «luta por um mundo melhor». Mas não há chancela política que apague crimes que com ela nada têm que ver.

 

Adenda – 27 de abril – nota enviada pelo CES ao Nascer do SOL

"Quando se afirma que (…) 'Mas os aconselhamentos do professor para que as vítimas recorressem aos canais internos do CES para se queixarem levantavam um problema. O único destino para onde as denúncias poderiam ser encaminhadas seria a Comissão de Ética do CES, criada em 2017; acontece que desta Comissão fazia parte a mulher de Boaventura de Sousa Santos, Maria Irene Ramalho. Tal facto era naturalmente inibidor de qualquer queixa conta Boaventura.' (…), estão a ser publicadas informações incorretas.

A investigadora Maria Irene Ramalho apenas integrou a Comissão de Ética do CES a partir de fevereiro de 2022. Por outro lado, desde 2021 que existe um canal de denúncias cujo seguimento é assegurado pela Provedoria do CES, sem qualquer tipo de intervenção da Comissão de Ética"