Os deuses devem estar loucos…

Para mim é estranho que no ano em que abrimos o cinquentenário do fim do regime salazarista e o princípio de uma era de liberdade se convide um presidente estrangeiro para discursar na casa da democracia.

Na próxima semana receberemos dois eventos principais na nossa urbe portuguesa: a celebração do 25 de Abril e, no mesmo dia, a visita de Lula da Silva, como Chefe do Estado brasileiro. Lula vai discursar na Assembleia da República uma hora antes da sessão solene que assinala o Dia da Liberdade. 

Parece-me uma coisa estranha que se convide um Chefe de Estado para celebrar connosco a libertação do Regime de Salazar e, ao mesmo tempo, tenhamos de dedicar uma sessão extra para o receber. É estranho! No mínimo, a palavra que posso empregar é esta… 

E porque me parece estranho? Porque quem nos visita não é Lula da Silva, mas o Chefe do Estado Brasileiro e que representa, seguramente, mais de três por cento dos habitantes do nosso país. É evidente que se ele visita a Assembleia da República e, se não vemos nada de mal, deveria ser incluído na celebração do Dia da Liberdade. O facto de termos de fazer uma sessão especial para receber o presidente brasileiro, uma hora antes da celebração do 25 de Abril, parece-me algo plástico. 

Uma coisa percebemos que é verdade. Não é um ato consensual, não só para os deputados, mas também para muitos portugueses. Já o era antes de sabermos que o presidente brasileiro acusa o Ocidente – onde Portugal se inclui – como responsável pela invasão russa no território ucraniano. Esta justificação nós já a conhecemos na boca dos maridos violentos que batem nas mulheres: dizem que as culpadas são as mulheres porque os levam ao limite e os obrigam a ter ataques de ira ao ponto de as maltratar, violentar e esfaquear. 

O salazarismo tinha as suas narrativas sobre a portugalidade, o libertarismo abriliano tem as suas narrativas sobre essa mesma portugalidade. Para mim é estranho que no ano em que abrimos o cinquentenário do fim do regime salazarista e o princípio de uma era de liberdade se convide um presidente estrangeiro para discursar na casa da democracia.

Eu nasci um ano depois do 25 de Abril de 1974. Não sei, nem faço a mínima ideia do que é viver debaixo de um sistema repressivo das ideias e liberdades individuais. Uma das coisas que mais prezo na minha vida é a liberdade de pensamento. É verdade que me tem dado alguns dissabores, porque gosto de conversar, de discutir argumentos e encontrar discursos lógicos sobre a realidade, mas nem todos gostam de se submeter à diversidade de pensamento e de ação. Eu porém, prezo poder todas as semanas escrever um texto e exprimir o que me vai na alma sem que me amordacem o pensamento.Eu sou filho da liberdade, mas é verdade, também, que nem sempre sou um homem livre, porque não faço o que quero e faço muitas vezes o que não quero. Ora, esta liberdade exterior que é um dom, nem sempre se reflete na minha capacidade interior de a viver com responsabilidade. Sei que vivo muitas vezes agrilhoado e aprisionado às minhas paixões e às minhas ideologias. 

Na realidade, são as ideologias que mais me mordem e me cegam a mim. Se todos pensarmos um pouco acerca da nossa capacidade de diálogo ou, dito de outra forma, da nossa incapacidade de diálogo, veremos como a ideologia nos incapacita de um encontro verdadeiro com os outros. 

Se faço um esforço para ser livre de preconceitos diante de todos aqueles que se me apresentam em cada dia? Sim! Faço um esforço… nem sempre consigo, penso eu, mas faço um esforço. Gostaria de ser mais livre e de viver num mundo muitíssimo mais livre. 

Infelizmente, estamos a viver uma tendência que aprisiona a nossa racionalidade, seguindo ideais e ideologias que não estimulam o diálogo nem a liberdade de pensamento. Este início de comemorações do cinquentenário do 25 de Abril parece-me estar a ser muito pouco democrático…