E se um torreão do Terreiro do Paço cair?

Que interessante processo estes senhores inventaram para não assumirem as responsabilidades pelas decisões que tomaram no exercício da governação, sejam ministros, secretários de Estado, presidentes de câmaras municipais ou vereadores.

por José Miguel Fonsca
Arquiteto e urbanista

Estive pela primeira vez em Veneza em 1975. O processo construtivo escolhido para a edificação do núcleo urbano revelou ser ao longo de séculos o melhor adequado. Hoje, com a subida das águas, começa a ser posta em causa a possibilidade de se preservar como até aqui.

Dever-se-á atribuir a responsabilidade do seu estado atual apenas à condição dos materiais, da alteração de condições climáticas, ou deverá ser também atribuída à incapacidade e impreparação dos governantes?

 Os leitores já imaginaram em que estado vai estar dentro de 50 anos o Torreão Nascente do Terreiro do Paço, a principal praça da cidade de Lisboa, depois das obras realizadas para a implantação do traçado do Metropolitano que liga a estação dos Restauradores à de Santa Apolónia?

 Essas obras resultaram de decisões então tomadas por um conjunto de governantes do poder local – vereadores – que, a meu ver, se mostraram comprovadamente incompetentes.

Revelaram também nada saber do que se tratava, antes lhes importando, como quase sempre acontece, aliás, escolher a solução com o custo mais baixo, independentemente da qualidade técnica das propostas apresentadas (e, em muitos casos, existe apenas uma proposta). Mas, como uso dizer,  o barato acaba por sair quase sempre mais caro.

E se aquele torreão  vier a cair, tal como sucedeu no Mosteiro dos Jerónimos  em 18 de dezembro de 1878, quando um outro torreão, com cerca de 30 metros, desabou? Essas obras estavam a ser realizadas sob a orientação dos cenógrafos italianos do Teatro de S. Carlos, Aquiles Rambois e Giuseppe Cinatti, que ao que parece pouco sabiam de engenharia…

Se acontecer o mesmo no Terreiro do Paço, quem deveria assumir as responsabilidades?

Estes governantes parecem não se preocupar com o que possa vir a suceder no futuro, ou seja, com os efeitos a médio e longo prazo das decisões que tomaram.

Pensarão para consigo próprios: «Fiz o melhor que pude e soube». E quando se demitem, são elogiados por terceiros, que afirmam:  «Foram tiradas as consequências».

Que interessante processo estes senhores inventaram para não assumirem as responsabilidades pelas decisões que tomaram no exercício da governação, sejam ministros, secretários de Estado, presidentes de câmaras municipais ou vereadores.

E importa perguntar: o que é que esses decisores e/ou governantes sabiam sobre os assuntos em causa? O que estudaram sobre os mesmos? Será que dizem a si próprios: «Isso não nos interessa… Os nossos assessores preparam-nos os elementos para podermos decidir»?

Ora, que preparação e conhecimento resultante de uma experiência prática obtida no exercício da engenharia ou da arquitetura têm estes assessores? Ou terão apenas conhecimentos teóricos resultantes de estudos e dissertações expressas em teses de mestrado e doutoramento (todas válidas, mas que não bastam para este caso)? Ou, pior ainda, foram escolhidos por pertencerem ao mesmo grupo político-partidário ou familiar?

 

Em Portugal, no final dos anos setenta, uma entidade credível propôs a um grupo parlamentar  que apoiasse a criação de uma Escola de Autarcas, por razões que alguns dos seus componentes julgaram evidentes. A resposta foi definitiva e esclarecedora: «Os eleitos não precisam de ir para uma escola de formação». E assim foi.

Para que um profissional possa exercer como arquiteto a atividade de arquitetura tem que estar credenciado, tal como um engenheiro, um economista, um médico, um condutor de táxis ou de ambulâncias. Mas para exercer a atividade política ninguém precisa de estar credenciado… Pode ser a tia, a prima, o amigo e sei  lá mais quem, independentemente da competência que esse alguém possua e que tenha sido devidamente comprovada.

 Em nome de que princípio se permitiu, ao longo destes últimos 40 anos, uma ocupação dos lugares do poder executivo por muitos indivíduos não credenciados e sem as devidas e necessárias competências? E isto aconteceu no poder central e no poder local, passando pelas entidades público-privadas e até, em alguns casos, no quadro geral da administração pública.

De quem foi esta brilhante ideia? E quando surgiu? Quem a propôs? Quem a promulgou? Quem a regulamentou para que pudesse passar a ser aplicada, por inscrita no quadro legal então já em vigor?

 Eu sei porquê, e estou convencido de que alguns leitores também sabem.

Os erros cometidos pelos governantes estão bem à vista. E os que não os quiserem ver, acabam por ser coniventes com eles. Quem cala, consente. Alguns dos senhores da governação têm vivido e sobrevivido à custa deste medo sistémico que se apoderou da generalidade dos portugueses e que os impede de expressar publicamente o que pensam, ficando desse modo  ‘à mercê de’. Mas o curioso é que não deixam de se queixar à mesa do café, em conversa com os amigos. Fazem-no, porém, em voz baixa, de modo a não serem ouvidos fora do seu pequeno círculo…

Carlos Moedas, sendo engenheiro de formação, tem a oportunidade de funcionar – e entendo que o tem feito bem – como ‘1º vereador da CML’, de forma diferente da dos seus antecessores (daqueles que ocuparam o mesmo lugar desde 1990).

E, já agora, será que os profissionais liberais – arquitetos, engenheiros e outros técnicos responsáveis – também não deveriam ter uma formação abrangente, com uma visão prospetiva, olhando o médio e longo prazos?

Quando perguntei ao autor do estudo vencedor do concurso público para a Praça de Espanha «Como pensa que estará a praça dentro de 50 anos?», respondeu-me: «Não sei. Nessa altura já cá não ‘tou’».