L’arroseur arrosé

O currículo de um famoso professor, ídolo de uma certa esquerda, perdia subitamente importância perante as acusações de assédio feitas por meia dúzia de mulheres. Parecia injusto. Mas, por outro lado, era irónico.

Durante muitas semanas a Igreja Católica esteve na berlinda. Primeiro, foi a polémica sobre o custo do palco para a receção ao Papa na Jornada Mundial da Juventude; depois, foram os abusos sexuais de padres.

Este tema foi tratado à exaustão – e aproveitado pelos anticlericais, que em Portugal pululam. Já Oliveira Martins dizia, no fim do século XIX, que o povo português era o mais anticlerical da Europa. 

Ora, quando este escândalo começava a esfriar, rebenta outro, de dimensão muito diferente e sentido (quase) oposto: o conhecido sociólogo Boaventura de Sousa Santos é acusado de assédio sexual por mulheres que academicamente orientava. 

E também aqui, como na Igreja, houve acusações de encobrimento. Disse-se que várias denúncias foram ignoradas, que pichagens nas paredes foram apagadas, que algumas pessoas foram aconselhadas a não falar com o argumento de que isso «beneficiaria a direita». 

Num ápice, o famoso professor, ídolo de uma certa esquerda, via a reputação cair na lama. O seu vasto currículo – duas vezes condecorado pelo Presidente da República, vencedor de muitos prémios, doutor honoris causa por diversas universidades brasileiras, autor de vários livros e de publicações em reputadas revistas internacionais – perdia subitamente importância perante as acusações de assédio feitas por meia dúzia de mulheres. 

Parecia injusto. Mas, por outro lado, era irónico: um homem de esquerda, um adversário da cultura patriarcal, um denunciante do domínio dos homens sobre as mulheres, dos poderosos sobre os fracos, via-se na situação de ser acusado de abusar de uma situação de poder em relação a jovens que estavam sob a sua tutela académica. 

O homem que escrevera textos como este: «A persistência histórica da cultura patriarcal é tão forte que, mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar ativamente que ela seja eliminada», era acusado de abusos sexuais por parte de… feministas!

E as acusações não se referiam simplesmente a atos de ‘sedução’, que é legítima: um professor pode apaixonar-se por uma aluna e tentar conquistá-la. A minha mãe era aluna do meu pai na Faculdade de Letras, foi cortejada por ele e casaram-se.

As suspeitas nem sequer diziam respeito a assédio mais ou menos encapotado.

Eram piores: de forma direta, algumas denunciantes relataram manifestações de grande virilidade por parte do sociólogo. Uma delas contou que, depois de Boaventura de Sousa Santos a atrair a sua casa com o pretexto de lhe emprestar um livro, lhe saltou literalmente para cima. 

Há um filme dos primórdios do cinema chamado L’Arroseur Arrosé (que pode ser traduzido em português por ‘O Regador Regado’), realizado em 1895 por Louis Lumière, e que me vem à memória sempre que ocorrem situações destas. É uma curta-metragem onde se vê um agricultor a tentar regar a horta – e que acaba encharcado pelos tubos de rega. 

Boaventura de Sousa Santos, o universitário de esquerda, defensor do feminismo, do politicamente correto, vê-se acusado pelas próprias ‘vítimas’ que teoricamente defendia. 

Devo dizer, como nota à margem, que a condição de ‘cientista’ atribuída a Boaventura de Sousa Santos sempre me pareceu questionável. O rótulo de ‘ciência’, que disciplinas como a sociologia ou a política se atribuem a si próprias, é frequentemente uma forma de dar cobertura ‘científica’ a simples opiniões. Diz-se que Boaventura é um ‘sociólogo de esquerda’. Mas ninguém diz de um matemático ou de um físico que é um ‘matemático de esquerda’ ou um ‘físico de esquerda’. As ciências não admitem rótulos ideológicos. 

Nunca vi Boaventura de Sousa Santos como um cientista mas sim como um opinador, um defensor de um conjunto de opiniões que não coincidiam com as minhas. Um defensor de causas que tinham a ver com o politicamente correto: as famosas causas fraturantes, desde o feminismo radical à luta contra um suposto ‘racismo estrutural’. 

O movimento Me Too, que há uns anos veio abalar o mundo com denúncias de assédio sexual (alguns cometidos há muitos anos), iniciou uma caça às bruxas a atores, escritores, etc., que em muitos casos acabaram por ser proscritos (ou ‘cancelados’, como agora se diz). Várias vezes me insurgi contra esses processos, e falei a propósito de uma ‘nova Inquisição’. 

Ora, o que há de singular neste caso é que um dos mais conhecidos propagandistas dessa cultura, que da conservadora Coimbra e da universidade onde Salazar se formou expendia para o mundo as suas teorias, vê-se acusado dos crimes contra os quais verbalmente toda a vida se bateu. O homem que combateu o machismo com palavras é suspeito de o exercitar com atos. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Uma cultura que Boaventura ajudou a difundir, de que foi um dos arautos, desabou de repente sobre ele.

Nesta hora de ‘má ventura’, Boaventura de Sousa Santos tem todo o direito à sua defesa. Já começou, de resto, a fazê-lo. No Chile, onde participou numa Feira do Livro, interveio a dizer que há «movimentos feministas que são racistas». 

Para se defender, o professor vai ter agora de atacar militantes de movimentos que ainda ontem defendia.
A História prega por vezes partidas. 

Diz-se que pintou os lábios de vermelho em solidariedade com Marisa Matias, ‘ofendida’ por André Ventura. Será que depois disto vai pintar a cara de preto?