Espalhados pelas prateleiras da sala de estar há objetos provenientes dos quatro cantos do mundo, desde os mais triviais, como um boneco de peluche, aos mais estranhos ou raros. Entre estes, destaca-se um coco do mar – a maior semente do mundo, que tem uma forma extraordinariamente semelhante à das coxas humanas e exibe até a marca de uma púbis feminina num dos lados. «É uma semente que cai ao mar, anda pelo mar fora e vai dar à Índia», explica o anfitrião. «Na Índia nunca tinham visto isto, pensavam que era um coqueiro que nascia debaixo do mar. E por isso chamaram-lhe coco de mer». Depois há um ovo de casuar – «foi-me dado por um missionário americano na Nova Guiné» –, um artefacto feito com dentes de urso, peças de Angola, do Perú, da Colômbia, de Bali, da China… «É a Sociedade das Nações», resume.
Além destas recordações, nas suas viagens pelo mundo Victor Bandeira foi colecionando histórias, algumas das quais passou a escrito e reuniu no livro Porque não?, com ilustrações de Rita Cardoso Pires, filha do autor da Balada da Praia dos Cães. O título, como nos conta no prefácio, repete uma resposta que deu ao seu amigo David Mourão Ferreira, quando este o convidou a assinar uma crónica n’A Capital: «‘Podes escrever o que quiseres’, garantiu-me, ‘agora já não há censura’. Devo ter dito:‘Por que não?’».
Atualmente com 92 anos, Victor Bandeira diz que quando lê o que escreveu naquela época é como se fosse um livro de outra pessoa. «Comove-me. Às vezes vêm-me as lágrimas aos olhos», admite. «Ridículo!».
É verdade que foi trapezista?
Fui trapezista na minha juventude, no Lisboa Ginásio. Era trapezista, daqueles voadores, que vão de um trapézio para o outro, ou então do trapézio para as mãos de um base. Cheguei a fazer no Coliseu.
Isso com que idade?
Entre os 16 e os 20 anos. No Coliseu mete muita impressão. Aquilo fica montado muito alto, à altura da terceira galeria, mais ou menos, e quando se está a ensaiar e se olha para baixo e não está lá ninguém, é só cadeiras, cadeiras, cadeiras, a rede parece uma coisa estreitinha… Mete medo. Depois, no dia do espetáculo com a sala cheia, acabou. Olhas para baixo e está tudo cheio.
Pois, eu percebi logo que não podia ter medo das alturas, para viver neste 10.º andar…
Gosto de estar alto, sim. [risos]
E depois deixou de ser trapezista porquê?
Porque na realidade não era trapezista. Fazia trapézio três vezes por semana, assim como fazia esgrima e ginástica, fazia saltos… Desde os meus sete, oito anos, ainda não havia os telefones e essas coisas para ocupar o tempo. Como morava mesmo ali ao lado, a cena era ir para o Lisboa Ginásio e estar lá a treinar, os amigos encontrávamo-nos lá… aquelas coisas de bairro.
E ao longo da vida alguma vez sentiu que isso lhe foi útil?
Acho que sim, que me foi muito útil. Saber cair é ótimo.
Mas nunca se aleijou…
Só uma vez que caí fora da rede. Tinha feito um voo para lá e quando vinha para cá agarrei o trapézio mal, ficou quase na ponta dos dedos e quando estava a chegar ao poiso soltaram-se-me as mãos, passei por baixo do poiso e fui aterrar na galeria que estava exatamente àquela altura.
Foi por pouco!
Recordo que fiquei sem fôlego, por ter saído o ar todo de uma vez. Estiveram ali a fazer-me umas coisas… mas não aconteceu nada, nem nunca parti nada. Tenho muita sorte. Não fui picado por nenhuma cobra, por nenhum bicho terrível… Só pelos mosquitos, claro.
E de onde lhe veio esse gosto pelas viagens?
Esse gosto pelas viagens começou com a leitura. Quando era miúdo li as Mil e Uma Noites e aqueles mundos fascinaram-me de tal maneira, Samarcanda e não sei mais quê…
Bagdade…
Onde eu estive com um calor abrasador. Tinha sempre sonhado com Bagdade, fui dormir para casa de um tipo e lá fiquei. Nunca saí de casa.
Não se conseguia?
Era impossível. E não valia a pena. Aquilo não tinha graça nenhuma, era uma palermice, umas ruas sem pés nem cabeça e o rio como uma espécie de uma torre do outro lado a deitar fumo. Medonho.
Isso em que época? Anos 80?
Foi mais ou menos na época em que o aiatola voltou ao Irão [1979]. Fui de carro.
Mas então começou com As Mil e uma Noites.
Para já, o nome é fascinante. É aquela história que nunca mais acaba… Um muito jovem adolescente, como eu era, entra num mundo completamente diferente.
Ainda por cima o país devia ser mais fechado…
Bastante. Sempre sonhei em viajar. Até que arranjei um ofício, ou um emprego, que me fazia viajar e me pagava as viagens.
E que ofício era esse?
Comprar objetos antigos e revendê-los.
Mas para isso é preciso saber. Como aprendeu?
Para já, é preciso gostar. No meu caso, comecei por comprar pequenos objetos e revendê-los. Depois acabei por ir a França comprá-los e depois à Holanda e depois já ia a leilões a Londres. Nessa altura era praticamente o único português a negociar nesses objetos. Como arranjei objetos de qualidade, foi-me fácil relacionar-me muito bem com grandes nomes desses antiquários especialistas, franceses, de Nova Iorque e o diabo. Era só eu em Portugal, por isso era fácil conhecerem-me. Até que um dia disse: ‘Espera lá. Ando agora aqui a comprar estas coisas de um lado para vender no outro. Não acho graça nenhuma. O que deve ser mesmo giro é ir à procura deles’. Nessa altura eu era sócio de um antiquário ali em frente Jardim de São Pedro Alcântara, a Biblarte Lda. Saí da sociedade, com esse dinheiro comprei um jipe, pumba. Aqui vai disto.
E partiu. Mas então nunca teve uma educação mais formal na área?
Eu era muito curioso, tinha feito um curso de Iniciação à Arqueologia com o coronel Afonso do Paço. Também gostava muito de desenhar e tinha andado a estudar na Sociedade de Belas-Artes à noite. Queria ser arquiteto, mas desisti: ‘Se um dia for arquiteto, o que é que vou fazer? Casinhas para o pessoal? Não vou fazer um templo ou uma catedral gótica’. De maneira que… Quer que conte a história toda?
Claro, estamos aqui para isso.
Então vou contar. Menos quando fui para o serviço militar… porque nunca fui. [risos] Eu fazia os tais números de trapezista e estava em plena forma. A única maneira de escapar era um índice, uma relação que havia entre a altura, o peso e a caixa torácica. E eu estive-me a treinar para, cada vez que respirava, ter a caixa mais fechada, fazia tudo ao contrário – perder noites, transpirar, perder peso. E quando lá fui não passei. Mandaram-me chamar a mim e mais uns quatro ou cinco maduros que iam lá todos com radiografias e com muletas e não sei mais quê, e disseram: ‘Vocês foram todos rejeitados porque são uma merda!’. Voltando atrás: entretanto deixei de estudar. No fim do curso dos liceus queria fazer qualquer coisa. Podia ter ido trabalhar com o meu pai, que era sócio daquela casa muito grande que havia na Rua Augusta, a Old England. Havia a Casa Africana e na outra esquina era esta. Mas nunca me passou pela cabeça ir trabalhar para lá. E o meu pai diz-me: ‘Se quiseres arranjo-te emprego num armazém de fazendas, moço de armazém’. Era 300 paus por mês, e eu disse:‘OK, porreiro’. Moço de armazém. Ia para lá varrer o armazém ao sábado, sacudir uma espécie de umas mantas que vinham todas cheias de areia para pesar mais, arrumar as prateleiras… Achava graça àquilo, estive lá um mês ou dois, ou três ou quatro, não chegou a um ano.
Fartou-se?
Entretanto, um amigo meu do Lisboa Ginásio, que fazia lá boxe, disse: ‘Queres vir trabalhar comigo? Tenho uma representação de tecidos e suspensórios’. Fui trabalhar com ele, andávamos os dois a ver aí tecidos e suspensórios. Isso durou uns meses. A gente levava as amostras, eles viam e diziam: ‘Queremos tanto deste e tanto daquele’, e a gente recebia a comissão. Isso acabou porque o dinheiro que a gente tinha ganho esse meu amigo gastou-o com uma espanhola do Parque Mayer, que era a Lola não sei quê… [risos]
Uma corista?
Exatamente. Nessa altura havia muito dessas nuestras hermanas por cá. E depois houve um amigo que ia abrir uma loja de antiguidades. Como eu sempre gostei de coisas das antigas e de arte, o meu pai ajudou-me, comprámos a quota juntos – eu, esse e um outro tipo que conhecia de livros, por isso é que se chamava Biblarte. Abrimos a loja os três, tinha pertencido antes a um russo que tinha entrado naqueles primeiros filmes portugueses. E pronto, comecei a comprar coisas e a vender.
Que tipo de coisas? Móveis, quadros…
Tudo o que normalmente os antiquários vendem: móveis, quadros, pinturas, tudo. Mas o que me interessava era as coisas mais primitivas, ingénuas, de maneira que comecei a ir para aquele lado. Depois comprava tudo o que era livros sobre isso e a visitar esses museus em todo o lado onde eu ia. E fui aprendendo assim. E depois, assim que se começa a comprar e vender, percebe-se mais ou menos…
O valor das coisas?
Claro. Pelo menos o ‘valor de bolsa’ que as coisas podem ter. E assim foi. Fui para a África, sabia exatamente a que centros queria ir, tinha estudado tudo, levava mapas, super organizado.
Fale-me então dessa primeira incursão que faz a África. A pessoa tem de ter contactos lá?
Não tinha contacto nenhum com ninguém.
Tem de levar presentes? Como funciona?
Na altura em que eu atravessei África os franceses tinham acabado de rebentar lá uma bomba atómica no Sahara, do lado direito de quem desce. Havia uns avisos com umas caveiras.
Isso foi aquela vez em que a Polícia vos mandou embora porque iam rebentar uma bomba?
Essa ia ser a segunda. Mas fomos por ali abaixo e quando chegas à chamada África Negra, o sistema era ir para uma aldeia e ficar lá. Era o que eu fazia.
Mas os europeus nunca se deram muito bem com o clima e as doenças africanas.
Eu dou-me perfeitamente bem com o calor. Apanhei malária como toda a gente. Aliás os brancos em África andam muito menos queimados do que aqui na praia. Quanto à maneira como se faz os contactos, cada pessoa inventa a sua. A minha era chegar a uma aldeia, pedir para falar com o chefe – há sempre um chefe. O chefe tinha uma cadeirinha e puxava uma para eu me sentar. Ficávamos ali a conversar e eu dizia: ‘Olhe, eu venho lá de Portugal, gosto muito destas coisas, sei que vocês aqui têm o tipo de objetos que me interessa’. Levava normalmente livros para mostrar. ‘Nós também gostávamos de ter destes lá na nossa terra, de maneira que se tiverem alguns que queiram vender, cá estou’. A coisa começava assim. Isto na Costa do Marfim.
E falavam francês?
Sim.
Então não precisavam de um intérprete?
Aí não, mas era muito bom ter um intérprete que falasse a língua local. Quando estive entre os Baoulé, arranjei um miúdo óptimo. Ele era Baoulé, falava baoulé e aí o nosso sistema era o seguinte, estávamos mais organizados: eu a partir de certa altura sabia todos os nomes que eles davam àqueles objetos – já não era ‘o boneco’ –, de maneira que quando chegávamos a uma aldeia, enquanto eu ia falar com o chefe, esse miúdo ia a correr para a aldeia anunciar: ‘Está aqui um gajo que quer comprar’. Passado um bocado as coisas começavam a aparecer. Depois do primeiro vender uma peça, os outros todos também querem dinheiro. E pronto, a coisa está lançada.
E trazer essas coisas para cá?
Isso é parte da história. Muitas coisas iam ficando para trás, eu ia buscá-las depois, algumas ficaram pelo caminho e nunca as consegui reaver. Felizmente são poucas. Uma vez deixei uma mala no Brasil, lá no meio do mato, e nunca mais a vi. E tinha coisas tão giras. Mas nessa altura, em África, era mais a complicação física de andar com as coisas e de as despachar.
Tinha carregadores ou assim?
Tive de tudo. Carreguei, tive carregadores, houve sítios onde tinha oito ou nove tipos a carregar coisas para um barco que eu tinha ali para levar para o meu barco depois, cheguei a carregar as coisas para o aeroporto com uma carreta daquelas que servem para levar os caixões, era a única coisa que havia lá com rodas… Havia de tudo. Mas, por exemplo, nessa primeira viagem, a maior parte das coisas eu consegui levá-las até à Guiné Portuguesa. Tinha um carro muito grande e coube tudo lá dentro e por cima. Depois muita coisa consegui enviar por barcos da Marinha, onde eu fiz amizades, e outras pela Força Aérea. Iam lá levar coisas e voltavam descarregados. À medida que ia descendo por África, na Costa do Marfim, já era mais difícil. Mas as alfândegas de saída eram praticamente inexistentes.
Há tempos li um relato sobre expedições portuguesas no século XIX, em que eles andavam a querer convencer os chefes locais a terem acordos de comércio, esse tipo de coisas. Mas muitos deles ficavam quase reféns dos chefes das aldeias, que queriam armas, tecidos, e retinham-nos ali… Eles deliravam com aqueles uniformes militares, especialmente se tinham botões dourados.
Ainda encontrei muitos chefes vestidos com esses uniformes.
Nunca sentiu que estivesse um bocado nas mãos desses chefes? Até porque a pessoa não fala a língua deles…
Não, nunca senti. Aliás, nunca me pus em nenhuma situação em que tivesse esse problema. Era uma altura muito perigosa, em que havia os movimentos de independência desses países, o Sahara estava minado, aqui na saída de Marrocos e da Argélia…
Minado literalmente, com minas?
Literalmente. Para arranjar o visto para ir para a Argélia, foram meses aqui na embaixada de França em Lisboa, até me concederem o visto, que eu tinha que ir buscar ao consulado em Marrocos. Quando lá cheguei, o consulado tinha sido destruído por uma bomba. Já não havia consulado, voltou tudo ao princípio. Fui sem visto. E uma das coisas que me facilitou muito, embora eu não soubesse à partida, foi o facto de ir com a minha mulher. É outra coisa, um tipo que chega sozinho pode ser visto como mais perigoso. Um gajo que vai com mulher é uma pessoa em quem se pode confiar. Depois não levava roupas para dar, mas levava muitos medicamentos. Bastava ver um miúdo com uma ferida e dizer ‘anda cá para tratar’. No outro dia de manhã acordava logo com dez gajos para fazer tratamentos. Isso punha-me logo numa situação de grande amizade com eles.
Ficavam do seu lado.
Cheguei a ver uma vez uma velhota que supostamente era feiticeira. Queixava-se de que tinha sonhado que um cãozinho lhe tinha dado uma dentada e depois tinha ficado com aquela dor tão grande. Dei-lhe uma coisa para o reumático e passou-lhe!
E a comida?
Arroz, bacon, presuntos, aquelas porcarias, e às vezes o que ia caçando pelo caminho, umas avezitas…
Não comia a comida deles?
Não, não, fazia sempre a minha comida. Quando tinha sorte, se caçava uma abetarda ou assim, assim que chegava à aldeia, dava logo à primeira mulher que estava ali e ela preparava, ficava com o que queria e deixava um bocado para mim.
Mas então andava com uma arma?
Até mais do que uma. Tinha uma caçadeira, tinha uma carabina, um revólver…
Nunca foram cobiçadas?
Até me roubaram o revólver uma vez. Entraram pela janela do carro, num sítio onde eu tinha ido dormir numa pensãozita. Levaram as calças desse tal meu secretário – ficou para morrer – e roubarem-me o revólver. Quando me fui queixar à Polícia, eles disseram: ‘Sabemos que há aí um grupo que anda no cemitério a desenterrar os cadáveres. A gente vai encontrá-los na certeza’. Claro que nunca encontraram nada.
Isso não era visto como uma atitude hostil, andar com uma arma?
Eu não andava com arma, a arma estava no carro lá em cima, não andava armado para nenhum lado. E tinha os documentos. Quando chegava à fronteira declarava tudo, não era às escondidas. Era normal para quem ia viajar por África. Nem eles entenderiam que a pessoa não levasse arma… Fazia parte.
Conduzir lá era pacífico?
É ótimo. Eu gosto de conduzir nessas picadas.
Tinha um bom jipe?
Um Land Rover comprido.
Depois dessa viagem deixou de ir para África?
Não, voltei a África uma quantidade de vezes. Estive em Angola, em Cabinda, estive nos Bijagós N vezes.
Dizem que os Bijagós é paradisíaco.
É muito bonito. Nesta primeira viagem vi coisas dos Bijagós que não interessavam para nada. Uns bonecos, umas pirogas, coisas feiíssimas…
Aquele artesanato de aeroporto.
Exactamente. Um ou dois ou três anos mais tarde, num livro de um austríaco que fez uma viagem nos Bijagós já não sei se em finais de 1800 ou princípio dos anos 1900, e fez uma coleção fantástica para o Museu de Viena, vi fotografias de coisas que fiquei de boca aberta.
Voltou lá.
Fiquei lá um mês ou dois ou três. Comprei um motor, levei-o para lá, arranjei um tipo e disse-lhe: ‘Emprestas-me o barco e quando eu me for embora dou-te o motor’. O homem ficou todo contente e eu também e andava lá com o barquinho de uma ilha para outra. Era uma maravilha. Aí tinha o tal secretário e um cozinheiro, éramos uma equipa. Depois há muitos truques que a gente, com o tempo, vai aprendendo. Por exemplo, nesta parte africana, todos gostam muito de noz de cola. É uma nozinha roxa ou esbranquiçada. Tem um gosto difícil de explicar, não é doce. E quando bebe um gole de água por cima é ótimo. E é uma espécie de um cartão-de-visita.
A pessoa cai logo nas boas-graças.
Já não é um estranho. Isso são coisas que a pessoa vai aprendendo com o tempo. Uma vez cheguei lá, os velhos mandaram-me chamar porque havia lá um chefe deposto que era uma fera, um gajo mesmo bera, queriam ver-se livres dele. Já tinham ido ao palácio fazer queixas, disseram ‘sim, sim’ e não fizeram nada. E vieram ter comigo para conseguir arranjar maneira de depor o chefe. E eu arranjei uma coisa que realmente funcionou. ‘Vocês agora vão à Polícia, um de cada vez. Todos os dias vai um. Um apresenta queixa porque ele fez isto, outro apresenta queixa porque ele levou os ovos, outro apresenta a queixa porque deu pontapé na mulher’. Passados poucos dias o gajo já estava na rua. Claro, isto faz também amizade com as pessoas.
Quer dizer, recorriam a si como um conselheiro.
Sim. Um tipo veio ter comigo uma noite perguntar se eu tinha alguma coisa de medicação. Porque ele tinha quatro mulheres, mas já não… não dava, por isso pediu-me se eu tinha alguma injeção, alguma coisa que lhe pudesse dar. ‘Nâo tenho injeção nenhuma’. ‘Então o que é que eu devo fazer?’. ‘A única coisa que eu vejo é arranjares outra mulher’.
Outra?! [risos]
E nunca mais pensei nisso. Meses mais tarde, estou numa aldeiazinha a comprar umas coisas, aparece um gajo. ‘Lembra-se de mim?’. ‘Mais ou menos’. Tinha arranjado uma nova mulher, estava todo feliz…
Essas peças que trouxe hoje podem ser vistas ou perderam-se por aí?
Não se perderam nada. As que eu vendi antes de fazer a viagem para África estão aí pelo mundo fora, porque a maior parte delas não as vendi para Portugal. Todas as outras estão no Museu Nacional de Etnologia. A primeira coleção que eu trouxe, não sei se sabe, foi exposta no Porto. O Lagoa Henriques [escultor], que era meu amigo de miúdo, era professor lá e quando viu as peças disse: ‘Ó Victor, vai abrir lá uma sala lá na escola, género museu, era giro era fazer a exposição dessas peças lá’. Eu não tinha pensado nada disso. ‘Vá falar com o arquiteto Carlos Ramos para ele ver o que acha’. O Carlos Ramos disse logo que sim, as peças foram para lá e fizemos a exposição. O Eugénio de Andrade foi ver e gostou muito. Falou com o professor Jorge Dias [fundador do Museu de Etnologia do Ultramar]: ‘Olha, eu vi uma exposição de coisas engraçadas, vai lá ver’. O Jorge Dias foi lá ver e ficou encantado. Gostou muito de me conhecer, eu gostei muito dele, fizemos ali uma amizade rápida e o museu comprou-me as peças. Passado um tempo o Jorge Dias diz-me: ‘Ó Victor, porque é que não vai ao Brasil? Gostava tanto de ter cá alguma coisa do Brasil’. Eu nunca tinha pensado ir ao Brasil…
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