Dois dias antes do 25 de Abril, na SIC Notícias, dois jovens com perto de trinta anos falavam da política e das suas expectativas. Um, que se dizia próximo do PSD, era muito crítico da situação atual, o outro, próximo do PS, mostrava-se conformado.
A pivô de serviço massacrava o social-democrata como se estivesse num interrogatório policial: «Sabe quem aproximou Portugal da Europa?». «Seja mais concreto nas críticas que faz!». «Afinal, o que está mal para si nos dias de hoje? Não repita ideias-feitas!». O rapaz lá ia respondendo como podia, um tanto atrapalhado, dizendo que a habitação e os impostos eram grandes problemas para os jovens. Mas não conseguiu dizer mais.
Quanto ao socialista, explicou que depois do 25 de Abril tudo teve de ser construído a partir do zero, o que tornou a vida difícil ao novo regime. Adiantou que antes do 25 de Abril havia muito analfabetismo, havia muita pobreza, e apesar do muito que já se fez ainda há muito por fazer.
Este debate foi mal idealizado desde o princípio. Quando hoje se fala em debate político, a primeira ideia que vem à cabeça é convidar pessoas ligadas aos partidos – e, sobretudo, aos dois maiores. Ora, a sociedade portuguesa e a opinião pública não se resumem aos partidos. O interessante, mesmo, é procurar pessoas fora dos partidos, pois a lengalenga destes já estamos fartos de conhecer.
O jovem próximo do PSD não foi capaz de dizer nada da sua cabeça: limitou-se a falar da habitação e da carga fiscal, que são hoje as duas coisas mais faladas pelos media. E o jovem próximo do PS, para desculpar os governos, veio com a ‘pesada herança do fascismo’.
Ora, em primeiro lugar, o 25 de Abril foi há 50 anos – começando a ser tempo de este regime assumir as suas responsabilidades e não estar sempre a invocar o passado. Em segundo lugar, não podemos reduzir o passado a um cliché a preto e branco: antes do 25 de Abril era tudo mau, depois do 25 de Abril é um mar de rosas.
Em várias crónicas, tenho tentado fugir ao maniqueísmo e procurado ver claro e perceber as virtudes e defeitos deste regime e do anterior.
O grande feito do 25 de Abril foi restituir a liberdade aos portugueses. A liberdade é um bem insubstituível, e foi o 25 de Abril que a trouxe. Claro que não é um bem universal, embora todos gozem dela. A democracia interessa sobretudo à classe média, que é a sua principal beneficiária: poder falar sem medo, poder escrever o que vem à cabeça, poder criticar o poder, poder negociar à vontade, são bens que a classe média preza mas que dizem pouco quer às classes baixas quer às classes altas.
As classes baixas estão preocupadas com o dia-a-dia, com a sobrevivência, e pouco se lhes dá sobre se governa a esquerda ou a direita, se há liberdade de opinião ou não: o que lhe interessa é se o dinheiro chega ou não ao fim do mês. Quanto às classes altas, a liberdade pode pôr em causa os seus privilégios e portanto vê-a com desconfiança.
Mas para lá da liberdade – que, repito, é decisiva – o que trouxe de muito bom o 25 de Abril?
Julgo que as pessoas em geral têm mais dinheiro e que as cidades portuguesas estão mais bonitas. Para isso contribuíram em boa parte os dinheiros europeus. Temos vivido com muito dinheiro que não é gerado aqui, antes veio de fora. Ainda agora estamos a beneficiar do PRR.
Mas, em contrapartida, a nossa classe empresarial é porventura mais débil do que era no 25 de Abril e tem menos capacidade de investimento. Recorde-se que, no período revolucionário, foi destruído muito tecido empresarial, a começar pelo grupo CUF, o maior da Península, que detinha a Lisnave e a Setenave, entre muitas outras indústrias. E a perseguição aos empresários levou a que muitos fugissem para o estrangeiro, como Champalimaud, o dono da Siderurgia. E a nacionalização da banca afugentou capitais e banqueiros. E a reforma agrária provocou terríveis prejuízos que levaram depois muito tempo a remediar.
Logo por aqui se vê que o jovem que disse ter sido necessário ‘começar do zero’ não sabia bem o que dizia: se no 25 de Abril o país estava no zero, então no período revolucionário desceu muito abaixo de zero. Destruíram-se indústrias, instituições bancárias, propriedades rurais, afugentaram-se empresários, banqueiros, agricultores.
Todas as revoluções têm custos – mas é preciso assumi-los. E o problema das comemorações é este mesmo: só se olha para as virtudes, esquecem-se os defeitos.
Portugal tem hoje problemas seriíssimos. A elite política está doente – viciada na mentira, minada pela corrupção, assente no compadrio, atacada de miopia política e governando para as próximas eleições, só preocupada com a satisfação das suas clientelas, desprezando o interesse nacional, etc. E este é talvez o nosso principal problema. Depois, falta uma elite empresarial, faltam capitais, os jovens qualificados emigram, os menos qualificados não querem trabalhar e vivem do rendimento mínimo, para compensar importam-se imigrantes, com todos os problemas sociais que isso provoca. Estamos, por outro lado, de mão estendida ao estrangeiro, esperando que esses dinheiros vindos de fora resolvam as nossas dificuldades. Nunca resolveram.
E, com todos estes problemas, andamos a celebrar o 25 de Abril como se não tivessem decorrido 50 anos. Como se entretanto não tivesse acontecido nada.
Parecemos uma cambada de tolos – desculpem-me os que se sentirem atingidos.
Eu também festejei na rua o 25 de Abril. E o primeiro 1º de Maio. Mas não posso esquecer nem passar por cima de muitos disparates que desde então se fizeram. Como dizia Sophia de Mello Breyner em relação ao tempo da outra senhora, mas que volta a aplicar-se como uma luva aos dias de hoje, ‘vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar’.