Bruxelas: O cidadão tem a palavra

Do engenheiro ao canalizador, do académico ao varredor de rua, qualquer um pode ser chamado a participar nos painéis de cidadãos promovidos pela ComissãoEuropeia. Durante três fins-de-semana 150 pessoas oriundas de todos os Estados-membros discutiram como aumentar as oportunidades de aprendizagem num país estrangeiro

É uma mistura muito diversificada de pessoas que ocupa a sala de conferências Alcide De Gasperi, batizada com o nome do primeiro-ministro que reergueu a Itália no pós-II Guerra Mundial e se afirmou como um pioneiro do projeto europeu. Desta vez, não são tecnocratas de fato e gravata mas sim cidadãos de ‘carne e osso’ que ocupam as cadeiras com vista para o fundo envidraçado do moderno edifício Charlemagne (ou Karel de Grote, como se diz em flamengo), mesmo ao lado do famoso Berlaymont, um símbolo de Bruxelas comparável ao Atomium ou ao Maneken Pis.

Do engenheiro ao canalizador, do professor universitário ao varredor de rua, qualquer um pode ser convidado a participar neste Painel de Cidadãos – a escolha dos 150 participantes é feita de forma aleatória. Estão na capital belga para darem a sua opinião e apresentarem sugestões sobre a mobilidade na aprendizagem. Foram três fins-de-semana de discussões intensas e hoje, na sessão plenária, os 12 grupos de trabalho vão apresentar as suas 21 recomendações – que depois serão avaliadas e trabalhadas pela Comissão Europeia de forma a moldarem as políticas e darem origem a medidas concretas. Objetivo: aumentar as oportunidades de circulação e aprendizagem no estrangeiro.

Com facilidade conseguimos, entre os participantes, identificar o dinamarquês reservado, a jovem grega reivindicativa, o alemão pragmático, o espanhol expansivo e a búlgara voluntariosa. Mas a maioria dos cidadãos, obviamente, não encaixa nestes estereótipos. Tanto podem vestir uma confortável camisola de capuz como uma peça de malha, um clássico casaco de tweed ou uma ainda mais clássica t-shirt, embora estejam 10ºC lá fora, sob o céu plúmbeo de Bruxelas. Não há formalismos nem dress codes.

Um a um, os porta-vozes dos 12 grupos de trabalho sobem ao palco para apresentarem e defenderem as conclusões a que chegaram. Na plateia, há quem vá colocando dúvidas e objeções: «De onde vêm as verbas? Parece uma proposta extremamente cara…»; «De que ferramentas de Inteligência Artificial estamos a falar? As que existem são muito rudimentares».

Os oradores respondem o melhor que sabem, até porque no final todas as recomendações serão votadas. O boletim de voto apresenta um código de cores, que vai de ‘oponho-me firmemente’ a ‘apoio firmemente’. Não há uma avaliação intermédia, para obrigar os participantes a tomar posição.

Terminadas as votações, o apresentador-animador da sessão convida todos os presentes a acompanharem-no a cantar o hino da alegria, de Beethoven, o que ele próprio faz em alemão, enquanto toca num ukelele, o que acentua a atmosfera informal, a resvalar para a galhofa.

Em seguida, há quem pegue no microfone para fazer um balanço pessoal da experiência. Mais uma vez, as opiniões divergem. Integrar este Painel de Cidadãos «foi como ganhar a lotaria», descreve uma das participantes. «Foi uma experiência fenomenal». Um espanhol, mais céptico, considera que se perdeu demasiado tempo «a discutir soluções que já existiam». Por fim, uma jovem idealista alerta: «Gostaria que no próximo painel se discutissem questões humanitárias. Enquanto falamos há mães e filhos pequenos a afogarem-se no Mediterrâneo, no meu país. Não me sinto bem com isso». O seu apelo merece uma ovação.

‘Algo de verdadeiramente único’

A ideia de puxar os cidadãos para o centro de decisão das políticas europeias é uma consequência da Conferência para o Futuro da Europa, que se realizou entre abril de 2021 e maio de 2022. «A Comissão possui vários métodos de chegar aos cidadãos e envolvê-los», diz uma fonte da Comissão. «Mas há um par de anos embarcámos em algo verdadeiramente único, que foi a Conferência para o Futuro da Europa, onde organizámos uma consulta de larga escala que teve no seu cerne 800 cidadãos escolhidos aleatoriamente e quatro painéis para discutir diferentes temas. O resultado desse processo foram 49 propostas, um bom número das quais está a ser implementado neste preciso momento enquanto falamos».

A mobilidade na aprendizagem foi o tema do terceiro Painel dos Cidadãos, depois do desperdício alimentar e dos mundos virtuais. Como foi escolhido o que iria para cima da mesa das discussões? «Estamos numa fase muito inicial de implementação deste método de consulta», reconhece um responsável. «Assim que a presidente Von der Leyen anunciou que queria ver isto implementado na Comissão Europeia, começámos a organizar a primeira fase dos painéis, que terminou agora. E aí precisámos de olhar para o trabalho que estava programado na Comissão para o ano seguinte: 80% das iniciativas já tinham sido influenciadas pelos resultados da Conferência do Futuro da Europa, ou seja, sabíamos que muitos dos tópicos incluídos na agenda de trabalhos da Comissão já tinham tido um contributo dos cidadãos. E identificámos três iniciativas que podiam ser encaixadas nas nossas políticas. A intenção para o futuro é que haja uma consulta mais ampla para garantir que os temas escolhidos se prestem a esse tipo de processo, porque nem todos os tópicos se adequam. Mas também para garantir que os cidadãos chamados a envolver-se considerem o tema atraente e interessante».

O cidadão no lugar do burocrata

O uso da palavra ‘cidadãos’ neste contexto não será certamente acidental. Na Atenas do século VI a.C., a cidadania era uma prerrogativa do homem livre, com mais de 20 anos, nascido na cidade e que tivesse cumprido o serviço militar, e vinha acompanhada de direitos e de deveres. Cumpridos esses requisitos, podia-se assumir um papel ativo na governação da cidade, fosse na votação de decretos e leis, fosse na magistratura.

Com a Revolução Francesa, no final do século XVIII, a palavra ‘cidadão’ assumiu uma outra nuance. Além dos direitos e deveres que lhe estavam associados, implicava a noção de que a sociedade de ordens do Antigo Regime, com a nobreza no vértice – com todos os privilégios que isso implicava -, o clero e a burguesia no meio e a ‘arraia-miúda’ na base, tinha sido dissolvida de uma vez por todas. «Foram expressamente banidas todas as insígnias de superioridade social: os brasões nas casas e nas carruagens; as librés dos serviçais ou jóqueis […]; os bancos brasonados nas igrejas e os cata-ventos senhoriais», descreve o historiador Simon Schama em Cidadãos – Uma crónica da Revolução Francesa. «Nenhum cidadão poderia usar um nome que traduzisse o seu domínio ou posse de um lugar. O seu único emblema identitário herdado passava a ser o apelido do pai». Todos eram iguais perante a lei, independentemente do seu nascimento, e todos podiam exercer cargos públicos, dos mais baixos aos mais altos, de acordo com o seu talento.

Um pouco a Norte de Paris, aqui em Bruxelas – em cujo museu de Belas Artes se encontra um dos ícones da Revolução, a pintura A Morte de Marat, datada do «Ano Dois» e assinada por Jaques-Louis David, um dos pintores mais comprometidos com o processo político e social iniciado em 1789 –, a palavra ‘cidadão’ evoca o indivíduo com uma forte consciência cívica, empenhado em contribuir com o seu tempo, energia e conhecimento para o aperfeiçoamento da sociedade. Mas evoca sobretudo a pessoa comum, por oposição ao político ou ao burocrata engravatado.

Abrir mentalidades

Quando se fala de mobilidade na aprendizagem, o tema do mais recente Painel de Cidadãos, a primeira coisa que vem à cabeça é o programa Erasmus, que desde 1987 já ajudou mais de 13 milhões de pessoas, sobretudo estudantes, professores universitários e investigadores, a frequentarem aulas ou a exercerem a sua atividade noutro país. O que está em cima da mesa é precisamente isso: como estimular a circulação no espaço europeu, seja de estudantes, seja de profissionais, para criar oportunidades, aumentar competências e abrir horizontes.

«Diria que a mobilidade na aprendizagem não é algo de novo», declara uma alta responsável da Comissão Europeia. «Já existia na Idade Média, quando um artesão ia trabalhar para outro país. O nome de Erasmo hoje é sinónimo de alguém que saiu do seu país em busca de conhecimento». O que há de novo então? «Na União Europeia falamos muito de livre circulação de pessoas, que foi uma das ideias fundadoras. Esse aspeto tem de ser apoiado, porque falamos línguas diferentes, temos visões diferentes, sistemas diferentes, culturas diferentes. É muito importante que as pessoas tenham essa experiência de passar um curto período noutro país, para saberem o que isso significa e abrirem as suas mentalidades», conclui a responsável.

Apoiado, que é como quem diz, financiado. Em março deste ano, a Comissão traçou metas ainda mais ambiciosas para o programa Erasmus+: com um orçamento reforçado de 4,43 mil milhões de euros, alargou-se para abarcar não apenas o ensino universitário, mas também a formação profissional, a juventude e o desporto. E agora, com as recomendações finais do Painel de Cidadãos na mão, a Comissão Europeia poderá definir ainda mais medidas para impulsionar este programa.

«Subitamente, é dito aos súbditos que passaram a ser Cidadãos», resume Simon Schama no seu livro sobre a Revolução Francesa. «Desta nova coisa, desta Nação de Cidadãos – esperam-se – aliás, exigem-se – justiça, liberdade e abundância». Mais de dois séculos passados sobre os acontecimentos de 1789-1799, ainda é por isso que os cidadãos dos Estados-membros da União Europeia anseiam: justiça, liberdade, abundância. De preferência, sem os tumultos e derramamento de sangue da França de Danton, Marat e Robespierre. Quanto aos painéis de cidadãos, podem não ser uma revolução, mas há que reconhecê-lo: trazer o europeu anónimo para o centro do debate político em Bruxelas já tem qualquer coisa de revolucionário. l

O jornalista viajou a convite do European Citizens’ Learning Mobility Panel