O nobre silêncio de Villa Triste

Sete vezes vencedor do Giro, Gino Bartali foi preso por transportar papéis que valeram a sobrevivência de dezenas de judeus

Para Gino, o fedelho de Ponte a Ema, dava um jeitão que as garrafas de vinho Chianti fossem recobertas de ráfia pois era assim que ganhava uns tostões à medida que pedalava pelos arredores dessa cidadezinha pacata da zona de Florença. Torello, o pai, matava-se a trabalhar para manter um quintarola e vender produtos frescos na praça, e a mulher e as duas irmãs mais velhas de Gino não tinham mãos a medir com cebolas, tomates, nabos e beterrabas. Quando nasceu, no dia 18 de julho de 1914, o futuro não se apresentava brilhante com a I Grande Guerra a alastrar pela a Europa e a deixar famílias como os Bartali no fio de arame da miséria. Quando, finalmente, a paz voltou a abraçar um continente destruído, Anita e Natalina foram condenadas a continuar a trabalhar com o pai enquanto os dois rapazes, Gino e Giulio, passaram a estudar em Florença, percorrendo todos os dias a distância de ida e volta de bicicleta fizesse que diabo de tempo fizesse porque a meteorologia só interessava a Torello pelo impacto que tinha nas colheitas. Mais uma constipação ou uma gripe dos seus rapazes não valia um minuto do seu cuidado. Eram rijos como verdadeiros Bartali. Aguentavam chuva e granizo da mesma forma como se desfaziam suando em bica nos meses de canícula sentados nos selins das suas máquinas imparáveis.

Quem olha para as trombas de Gino Bartali sem saber quem é o mamífero aposta singelo contra dobrado que se trata de um boxeur com aquela testa enrugada, com os maxilares largos e o nariz torto de narinas bem abertas. Não se furtava a zaragatas com a malta da sua idade mas sentiu-se sempre mais inclinado a usar as pernas do que os punhos. Aos 17 anos venceu a sua primeira prova ciclística e o sonho de correr na Volta a Itália nunca mais lhe saiu da cabeça. E Gino era um cabeça dura. Disse NÃO! com maiúsculas ao pai quando resolveu largar os estudos e o velho Bartali o quis a seu lado tratando do crescimento de legumes. Queria o Giro e haveria de aparecer no Giro mais cedo ou mais tarde. Apareceu cedo.

Em 1935, Gino Bartali assumiu-se como ciclista profissional. Não lhe faltava nada para vir a transformar-se num dos maiores de todos os tempos e provou-o logo no ano seguinte quando venceu a Volta a Itália e abafou por completo os adversários nas etapas de montanha de Passo do Stelvio, no Monte Zocolan, no Passo del San Bernardino e no Passo de Pordoi. Nesse tempo, Benito Mussolini entretinha-se a fazer as suas palhaçadas um pouco por toda a Itália, viajava até à Alemanha Nazi para dividir o mundo a meias com Adolf Hitler, e considerava o desporto a mais poderosa das formas de mostrar a grande superioridade rácica daqueles que tinham sido os cidadãos do Império Romano. Num dos seus discursos, nos quais a saliva se espalhava abundantemente pelo redor – felizmente costumava dirigir-se à populaça de uma janela do alto do Palazzo Venezia, em Roma – afirmou a sua vontade de ver um italiano vencer a Volta a França pela primeira vez. Seria algo de histórico e representaria o símbolo de um poder universal. Ninguém ficou alheio às suas palavras. E toda a gente sabia que esse vencedor do Tour tinha um nome: Gino Bartali.

Gino, ao qual já toda a Itália chamava de Ginetaccio, cumpriu a inevitabilidade de vencer a Volta à França em 1938. Se o ridículo Benito estava à espera de o ouvir dedicar-lhe a vitória bem pôde esperar sentado. Bartali, Il Pio, estava-se nas tintas para Mussolini, Il Bufone. No ano anterior tinha estado igualmente no Tour mas fora abalroado por Jules Rossi e caiu de uma ponte em Briançon para dentro de um ribeiro perdendo a camisola amarela e sendo vítima de uma série de contusões que o obrigaram a desistir duas etapas mais tarde. Ah! Mas Ginetaccio era campeão dos pés à cabeça e não foi por acaso que venceu sete Voltas a Itália. Recebido com frieza depois do seu regresso vitorioso de 1938 arranjou mais uma série de sarilhos com Il Duce por criticar publicamente as medidas antissemitas votadas no Grande Conselho Fascista Italiano que seguiam os ditames das decisões tomadas em Nuremberga. Foi chamado de imediato para cumprir o serviço militar embora apresentasse um atestado médico que revelava ter um defeito cardíaco. Engajaram-no num Batalhão de Transmissões e ficou encarregue de entregar o correio dirigido à frente de batalha pedalando a sua bicicleta. Nos pneus do veículo transportava igualmente documentos que lhe eram entregues pelo cardeal Elia Della Costa e que permitiram a fuga de dezenas e dezenas de judeus dos campos de concentração graças aos vistos de autorização para viajarem para os Estados Unidos. Foi preso. Em Villa Triste, um de Florença palácio com nome a propósito, ameaçaram-no de tudo. Não abriu a boca. Ficou em silêncio como quando pedalava.