Um espetáculo confrangedor

Foi penosa por tudo: pelos deputados, que pareciam membros de uma qualquer Inquisição, interrogando o ministro de modo acintoso e agressivo, acusando-o de mentir, insistindo em perguntas a que ele já tinha respondido; e pelo próprio ministro, sujeitando-se a um interrogatório degradante, metendo os pés pelas mãos, arrastando a voz como se tivesse tomado calmantes…

Imagine-se um ministro a chegar de uma viagem intercontinental de 16 horas, pegar no telemóvel e despedir um adjunto.  

Imagine-se a chefe de gabinete do ministro a chegar no mesmo voo e a correr para o Ministério para redigir o despacho de despedimento do adjunto.  

Imagine-se o adjunto a chegar ao Ministério de bicicleta, entrar no edifício para ir buscar os seus haveres e ser desesperadamente agarrado por quatro colaboradoras do ministro, tentando arrancar-lhe a mochila onde levava o computador.  

Imagine-se o ministro, avisado em casa do que estava a passar-se, a ligar ao primeiro-ministro, sem sucesso, ao secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, ao ministro da Administração Interna, ao comandante-geral da PSP, ao ministro da Justiça, ao diretor-geral da PJ, outra vez ao primeiro-ministro e à ministra Adjunta.  

Ao mesmo tempo, as suas quatro colaboradoras, escondidas numa casa de banho, com medo do adjunto, ligavam para a PSP e para o SIRP.  

A que se deveria tamanho alvoroço? Seria o adjunto um perigoso espião que, vendo-se desmascarado, correu ao Ministério para levar importantes documentos secretos, passíveis de pôr em causa a segurança do Estado?  

O ministro sugere que sim. E adianta que o adjunto tinha comportamentos suspeitos, sendo visto a entrar no Ministério a altas horas da noite para fotocopiar papéis.  

Mas, afinal, que documentos tão importantes estavam no computador do adjunto, que justificassem tamanha mobilização de meios?  

Eram – imagine-se – documentos que tinham sido classificados como «confidenciais» pelo próprio adjunto uns dias antes!  

E que um deles, o Plano de Reestruturação da TAP, era tão relevante que nem sequer o ministro o tinha lido!   

E que, na sua maioria, estavam no arquivo do Ministério, sendo acessíveis a toda a gente!  

Como explicar, então, a inquietação do ministro e do seu gabinete?  

A questão é simples: é que, se os documentos não comprometiam o Estado, podiam comprometer o ministro.  

Era este o grande problema.  

O computador continha o histórico do trabalho do adjunto no Ministério ao longo de seis anos e das suas relações com os ministros (este e o anterior).  

O ministro ficou assim em pânico e desatou a ligar para toda a gente, como uma barata tonta.  

E instruiu as pessoas do seu gabinete para não deixarem sair de lá o computador, custasse o que custasse.  

Assim se explica a tentativa de tentarem arrancar à força a mochila das costas do adjunto.  

Sobre estes acontecimentos, o ministro foi ouvido na Comissão de Inquérito.  

Sobre as ordens que deu e que não deu, as pessoas para quem telefonou e a que horas o fez, as conversas que teve, a forma como despediu o adjunto.  

Foi penosa esta audição.  

E foi penosa por tudo: pelos deputados, que pareciam membros de uma qualquer Inquisição, interrogando o ministro de modo acintoso e agressivo, acusando-o de mentir, insistindo em perguntas a que ele já tinha respondido; e pelo próprio ministro, sujeitando-se a um interrogatório degradante, metendo os pés pelas mãos, arrastando a voz como se tivesse tomado calmantes para não se exaltar.  

E desiludindo os seus apoiantes, ao não ser capaz, por exemplo, de fazer uma cronologia dos seus telefonemas, dizendo que tal era «muito difícil». Muito difícil? Mas, com tantas colaboradoras no gabinete, seria assim tão complicado fazer esse trabalho?   

Confesso que, não tendo nada que ver com aquilo, me senti mal.  

Seria possível que a pessoa que ali estava a depor fosse mesmo um ministro?   

O triste espetáculo arrastou-se por mais de sete longas horas, e, pelas respostas que o ministro foi dando, percebeu-se como se chegou até ali.  

Percebeu-se que o Ministério é uma tremenda confusão.  

Que os documentos que agora se dizem importantíssimos e geraram a intervenção do SIS estavam afinal ao alcance de todos, e que foi o ‘perigoso’ ajunto quem os classificou.  

Que no Ministério todos se tratam por tu, é tu-cá-tu-lá, com o ministro a dizer às assessoras: «Faz isto», «Vai para ali», «Manda este recado a fulano», e estas a responderem-lhe no mesmo tom: «Tens de telefonar a sicrano», «Não deves fazer aquilo», etc.  

Quando o ambiente é este, é difícil manter o respeito.  

Tenho discordado várias vezes de Marcelo Rebelo de Sousa, mas aqui ele tem carradas de razão.  

A questão não é o ministro ser mais ou menos competente, dominar melhor ou pior os dossiês – a questão é ter ou não ter credibilidade e respeitabilidade para continuar a exercer o cargo.  

Ora, o ministro em causa perdeu a credibilidade e a respeitabilidade.  

As cenas rocambolescas no seu Ministério, o modo como se comportou, o que se percebeu sobre o clima no seu gabinete, não dignificam o Estado.  

António Costa, segurando-o, mostrou que considerou tudo aquilo normal.   

Ora, isso agravou ainda mais o problema.  

Quando um primeiro-ministro não age numa situação destas, a sua autoridade fica seriamente abalada. E isso contribui para que o ambiente no Governo vá progressivamente apodrecendo.   

  

P.S. – O discurso de Cavaco Silva no encontro de autarcas do PSD constitui um exemplo de como a palavra pode ser importante quando o orador tem autoridade. E de como é possível manter uma pose de Estado mesmo fazendo críticas muito duras.