Andar com os sapatos dos outros

Quando calçamos os sapatos dos outros, os passos que damos deixam de ser os nossos, são menos espontâneos, menos genuínos, mais lentos, doridos e trôpegos

Embora possa ser divertido na infância e adolescência, não é muito confortável usar os sapatos de outra pessoa, sobretudo se o número não for o nosso. Se forem demasiado pequenos ficamos com os pés apertados e se forem demasiado grandes temos de nos esforçar para que não estejam constantemente a cair. Ou também podemos simplesmente achá-los feios ou não gostarmos de nos ver com eles.

Se usá-los de vez em quando não seria cómodo, o que dizer de crianças que crescem a ter de usar os sapatos dos pais? Ou seja, crianças que têm de ser aquilo que os pais esperam delas, aquilo que os pais foram ou que não conseguiram ser, mas gostariam de ter sido?

Todos conhecemos casos próximos de pessoas que gostariam de ter seguido outros estudos, mas que tiveram de obedecer à escolha dos pais. Não só abdicaram do seu sonho, como tiveram de estudar anos a fio matérias que não eram do seu interesse e seguir uma carreira com a qual não se identificavam. Há histórias de quem tenha reencontrado mais tarde o seu sonho, depois da sua reforma ou da morte dos pais, ou quem se tenha conseguido libertar antes e mudar de rumo. Mas há também muitas outras de pessoas que passaram a vida sem se conseguirem sentir realizadas, a fazer uma coisa de que não gostavam, e ainda a achar que é por sua culpa ou incompetência.

Felizmente os pais parecem cada vez mais abertos às escolhas e gostos académicos e profissionais dos filhos.

Menos evidente, mas não menos grave, são todas as outras escolhas que os pais vão fazendo para os filhos ao longo do seu crescimento. Muitas vezes sem se darem conta permitem todos os comportamentos, gostos e feitios idênticos ao seu, mesmo os mais excêntricos, mas condenam todos aqueles que são diferentes.

Há uma tendência para que as famílias queiram que haja identificações e quando aparentemente não as encontram, estranham: ‘Mas a quem é que ele sai com este feitio? Não é a mim nem à minha família de certeza.’ Talvez saia a ele próprio, à sua personalidade, às condições em que cresceu e se desenvolveu. E isso não é mau. É ótimo! Conseguir ter uma personalidade única, poder traçar o seu caminho, fazer as suas escolhas, ser diferente. É bom que as famílias sejam unidas nos laços que as ligam, nas relações bem sedimentadas que duram para a vida, mas isso não tem que interferir com o ‘feitio’ e os gostos de cada um. 

Lembro-me de uma vez comentar com um amigo como o filho mais novo – que na altura tinha três anos – era o maior pirata. Corria e fugia para todo o lado, era absolutamente incontrolável. O que até era natural sendo o último de quatro. E ele respondeu com a sua calma característica: ‘Ele é assim, ele só consegue ser assim.’ Tinha piada como se destacava do resto da família em que todos são tranquilos e a forma como simplesmente o respeitavam assim.

Quando calçamos os sapatos dos outros, os passos que damos deixam de ser os nossos, são menos espontâneos, menos genuínos, mais lentos, doridos e trôpegos. Não deixa de se andar, mas o caminho é condicionado e os pés até podem ficar deformados. Fazer o nosso caminho com os sapatos errados – sem procurar e encontrar uns só nossos, de que gostemos e com que nos sintamos confortáveis, mesmo que mais ninguém goste deles – pode tornar-se, passo a passo, numa vida inteira de engano e frustração.

 

Psicóloga na ClinicaLab

Rita de Botton

filipachasqueira@gmail.com