Maria Elisa Domingues: “Gosto de ser surpreendida pela vida”

As coisas foram acontecendo tão rapidamente que lhe era difícil parar para perceber a marca que deixaria na televisão portuguesa. Começou aos 23 anos, como locutora, aos 30 já era diretora de programas da RTP. Hoje, 40 anos depois de ter estudado no Conservatório, Maria Elisa Domingues tem pisado as tábuas de madeira, abraçando uma…

Nunca teve objetivos bem delineados, sempre quis que a vida a surpreendesse. As oportunidades foram surgindo e, juntamente com uma pitada de sorte, tal como diz acreditar, Maria Elisa Domingues, tornou-se numa das figuras mais importantes da televisão portuguesa. Agora, a jornalista resgatou uma paixão antiga, estreando-se no teatro, com a peça ‘Cartas de Amor’, encenada por Paulo Sousa Costa, onde partilha o palco com Virgílio Castelo.

Já passaram das 23 horas. O auditório do Taguspark já se encontra vazio. Sentada numa das cadeiras, com os olhos azuis que combinam com o vestido, Maria Elisa Domingues fala sobre as coisas em que acredita, a forma como construiu a sua carreira, as angustias e obstáculos que enfrentou e a sua sede de viver.

Há quem diga que a Maria Elisa transmite demasiada seriedade. No entanto, já disse em várias entrevistas que isso é coisa que talvez venha com a idade. Como é que vê esta forma de olharem para si, já que não gosta de pessoas que se levam demasiado a sério? Eu não gosto de pessoas que se levam muito a sério por se considerarem importantes. Mais importantes que os outros porque têm uma profissão com algum destaque, ou porque são conhecidas… Isso não suporto. Agora, para mim, é absolutamente indispensável, seja a fazer pão, seja a fazer teatro, ou jornalismo, ter seriedade. Ai quero e gosto de ser levada a sério. Agora, isso não me confere nenhuma importância superior às outras pessoas Eu isso detesto. Detesto pessoas presunçosas, arrogantes. Talvez seja o defeito que eu mais odeio no mundo. Felizmente acho que nunca fui!

E é sempre a mesma pessoa? Quer esteja no seio pessoal ou no profissional? As pessoas costumam dizer que sim, portanto, deve haver alguma verdade nisso. Eu escolhi e foi uma escolha, ter uma certa postura enquanto jornalista de televisão, cuja imagem é o veículo e, portanto, uma pessoa tem que pensar como é que quer transmiti-la… Desde logo, desde os aspetos mais ‘comezinhos’, a maneira como uma pessoa se veste, os brincos que põe, os adereços que escolhe. Eu sempre pensei nessas coisas. Quer dizer, nunca ninguém me vestiu como hoje em dia se faz. Nunca quis isso. Eu tinha uma ideia da forma como queria aparecer e tentei sempre fazê-la passar. Na minha perspetiva, uma pessoa que aparece com uns brincos muito espalhafatosos, com joias a brilhar ou com um decote até ao pescoço (eu na peça tenho um decote, mas nunca o utilizaria como pivot ou numa entrevista política)… Acho que isso não tem nada a ver com ser pudico ou não. Acho que não se deve chocar as pessoas e nessas coisas eu sou bastante intransigente. E também tendo a gostar das pessoas que têm uma postura semelhante à minha. Este é o aspeto exterior. Depois, sempre procurei passar uma imagem de neutralidade para não ser conotada com qualquer posição política, embora numa fase da minha vida tenha sido, mas malgré moi. Mas eu não acredito que alguém possa olhar para uma entrevista e dizer assim: ‘Ah, você perguntou isto porque simpatizava com o PS, ou simpatizava com o PSD’. Mas é que nem sequer era o esforço. Quer dizer, quando eu tinha uma pessoa à minha frente para entrevistar, eu achava sempre que a melhor maneira de o fazer era ser o mais neutra possível. Era uma coisa que me saía naturalmente, que eu achava que era a maneira certa de fazer. Portanto, foi sempre assim.

Falávamos sobre estética… Também revelou numa entrevista que não se apercebia da mulher bonita que era e é. Sentiu que quando começou a fazer televisão isso importava de alguma maneira? É um requisito no setor? Quando eu entrei, de certeza que não contou, porque entrei por concurso público com provas que duraram um ano, foram três etapas de provas. Eu tinha óculos com lentes muito grossas. Não via um palmo à frente do nariz. Fui operada muito mais tarde. Fui aprovada sem óculos e mandaram-me colocar lentes de contacto. Eu comecei essas provas com 22 anos, fui aprovada aos 23. Não tinha ainda uma ideia muito clara do que é que me favorecia mais. Era impossível eu fazer o telejornal com óculos assim e havia formas de corrigir isso. Estamos a falar em 1973. Fui especificamente aceite sem óculos. Portanto, não foi de certeza a minha imagem. E só comprei as lentes de contacto quando recebi o meu primeiro ordenado. Era locutora de continuidade, conseguia fazer perfeitamente sem óculos.

E pressões por na altura ser a única mulher a conseguir tantos feitos em televisão… Também na televisão as mulheres têm sempre mais a provar que os homens? Em todo o lado… Eu sempre fui feminista. Sempre. Os meus pais deram-me uma educação muito rígida e, em alguns aspetos, antiquada, mas nunca em minha casa passou a ideia de que uma mulher devia ter menos acesso às coisas do que os homens. Isso nunca existiu. Portanto, a minha mãe tinha uma grande revolta porque não tinha estudado mais e só tinha feito o liceu. Para nós, o caminho natural era as pessoas fazerem o liceu, depois irem para a universidade e terem a carreira que quisessem. Nunca ninguém me disse que eu ia ter mais dificuldade por ser mulher, mas eu sabia. E acho que hoje, tantos anos depois e com tantas tantas coisas conquistadas, uma mulher ainda tem que realmente provar constantemente que é melhor, porque se for só tão capaz como [um homem], se calhar não optam por ela… A não ser que seja preciso por um motivo de quotas simbólicas. Às vezes fica bem convidar mais mulheres para certos lugares… 

Uma coisa um bocado forçada… Aconteceu-me um bocadinho ao contrário. Algumas das oportunidades que eu tive a seguir ao 25 de Abril, foram pelo facto de ser mulher. Havia uma revolução e era preciso dar oportunidade. Nos anos 70 uma das exigências era que se desse liberdade igual à mulher. Era uma coisa que estava nas agendas políticas em todos os países desenvolvidos. Portanto, nunca ninguém me disse que me escolhia porque eu era mulher, mas eu tive a sensação que isso me ajudou. 

E sente que ainda é necessário ser feminista? Há muita gente que ridiculariza o conceito… A maior parte das pessoas são muito ignorantes. Claro que faz sentido. Para já, os direitos das mulheres só avançaram muito num certo número de países. Há uma parte enorme de países no mundo onde as mulheres continuam a ser consideradas seres de segunda categoria. Mesmo em países civilizados. Por exemplo, o meu marido é americano e judeu. Com ele percebi que os judeus ortodoxos que vivem nos EUA ou Israel, países muitíssimo desenvolvidos, são tão conservadores em relação às mulheres como os árabes. Porque os árabes obrigam as mulheres a tapar o rosto para a cabeça… Os judeus ortodoxos obrigam as mulheres a usarem peruca. Isto é uma coisa que a maioria das pessoas não sabe… Não têm véu, mas não podem mostrar o cabelo. Andam vários passos atrás dos maridos. Depois, há sempre o perigo do retrocesso. Toda a gente fala disso. Nos EUA tem havido legislação que põe em causa alguns direitos das mulheres, nomeadamente o direito à interrupção voluntária da gravidez.

Quando estava na RTP, sentia a sua importância enquanto profissional? Não tinha tempo… Foi tudo muito depressa. Foi tudo muito cedo e muito depressa. É por isso que eu tenho tanta dificuldade em perceber as pessoas convencidas e as pessoas arrogantes. Eu acho que pura e simplesmente não tive tempo de fazer nada disso. Eu estava sempre tão preocupada em estudar, em fazer bem, em fazer boa figura. Não foi só ser jornalista, tive cargos de muita responsabilidade muito cedo, de decisão de chefia… Geri o orçamento da direção de programas da RTP com 30 anos e não tinha propriamente um curso de economia. Tinha pessoas a ajudar-me, mas tinha de ter muito bom senso, tinha de estudar muito. Não tinha tempo para estar a pensar se era uma pessoa muito importante, se não era… Sabia que era conhecida. Mas acho que se há uma qualidade que tenho na vida: é que isso nunca me subiu à cabeça.

E como é que lida com com o passar do tempo e com a idade? Conformo-me, mas não gosto. Eu acho que quem disser que gosta está a mentir. Não é tanto sermos velhos, é termos poucos anos para viver. Se me dissessem assim: ‘Chegas aos 70, mas agora tens mais outros tantos…’. Tudo bem! Mas não é assim. É claro que chegar aqui é sempre melhor do que não chegar… Mas o problema é estarmos sempre a olhar para a frente e a pensar quanto tempo faltará. Isso é muito angustiante e eu tenho aqui um lado meu muito angustiado. Eu sou uma pessoa inquieta e angustiada, mas que luta contra isso. Tenho um bocadinho uma natureza atormentada, um bocadinho depressiva. Portanto, às vezes dou comigo com estes pensamentos: ‘Quantos anos será que faltam? O que é que eu ainda vou conseguir fazer nestes anos? Quais são as viagens que eu não fiz?’. 

É uma apaixonada pela vida… Sou e custa-me muito pensar nestas coisas. Acho que todos temos imenso medo de acabar mal. Eu preocupo-me muito com a situação dos velhos no país. Tenho horror! Acho que as pessoas descartam com muita facilidade as pessoas de idade. 

Antes de se dedicar ao jornalismo, frequentou o curso de Medicina, até ao 2.º ano, e um curso de atriz no Conservatório, até ao penúltimo ano, e ajudou a fundar A Comuna. Essas duas paixões tão díspares andavam de mão dada? Não são díspares… Eu estava em medicina e queria fazer teatro. Já tinha feito no liceu… Quando comecei na medicina queria continuar a fazer… Por acaso a faculdade não tinha um grupo cénico, mas havia em Direito e eu fui! Claro que a maior parte das pessoas que lá estavam comigo, tornaram-se advogadas, outros acabaram por se tornar atores, o Francisco Pestana, por exemplo. Estudar uma coisa não invalida não gostar da outra. Fazia-o como hobby. Não havia nada de estranho nisso. Mas de facto, comecei a ter dúvidas se queria fazer uma coisa ou outra… Depois casei-me aos 19 e tive de me empregar para sustentar a casa. As pessoas acham que só agora é que é difícil arranjar emprego… Mas não. Não sabia escrever à máquina, não tinha carta de condução… Das ofertas de emprego que eu encontrava, de repente, abriu-se uma porta. Para ser sincera, eu não a procurei. Depois, não me pareceu concebível continuar a fazer locução de continuidade. Achei que era muito pouca coisa, uma coisa repetitiva, aborrecida. E surgiu a oportunidade de ir estudar para Paris. E eu fui. O que eu fiz foi sempre estar atenta e aproveitar algumas oportunidades que surgiram.

Como foi estudar em Paris? Olhe, foi também uma oportunidade que surgiu fruto da revolução. Foi o então Ministério da Comunicação Social que achou que os jornalistas, que estavam nos jornais antes do 25 de Abril, eram pessoas muito acomodadas, muitas delas partilhavam os valores do antigo regime e quis descobrir novos jornalistas. Aliás, ajudar a formar novos jornalistas. E, por isso, pagou à melhor escola de jornalistas de França, que desenhou um curso para 40 jovens portugueses estudantes que quisessem ser jornalistas.

E isso também foi por concurso. Concorremos 500 para serem selecionados 40. Era um curso intensivo de cinco, seis meses. E é óbvio que não chegava para formar um jornalista. Mais tarde, voltei. Até por sugestão da própria escola, que me arranjou uma bolsa do Ministério dos Negócios Estrangeiros Francês. Foi muito bom, muito bom. Abriu muito a minha cabeça. Comecei a perceber como é que se podia fazer televisão, como é que eram os jornais. Nessa altura éramos todos dependentes do Le Monde. Portanto, foram oportunidades que apareceram e que eu agarrei. É preciso estar atenta a essas coisas, claro.

Mas os seus pais não acharam muita piada quando se tornou locutora. Porquê? Pois não! (risos) Nada! Só que eu já estava casada. Portanto não podia fazer grande coisa. A RTP não tinha assim muito boa fama. Agora fala-se muito do assédio. Acho que os meus pais, já nessa altura, tiveram essa perceção. Tinham alguma razão, porque havia. Mas, em princípio, uma pessoa sabe que tem capacidade para lidar com essas situações, não é? É realmente como digo, eu já estava casada, tinha a minha liberdade e tinha uma capacidade de entendimento das situações. Mas passei por algumas situações desagradáveis.

Como é que as conseguia gerir? É um assunto que eu acho muito delicado, muito importante. Um dia espero falar dele, mas com espaço, tempo e enquadramento que não há numa simples entrevista. Mas consegui e acho que é possível. Depois do movimento do #Metoo estamos numa situação quase oposta, em que também se perdeu muito a espontaneidade, que continua a ser boa nas relações. É claro que há coisas intoleráveis, mas refiro-me à relação dos adultos com as crianças, que em certas sociedades, como a americana, nem podemos fazer-lhes uma festa na cabeça… Os professores não podem dizer a uma menina que ela é bonita… Chegámos a um estado de hiper sensibilidade que nos tira muito a espontaneidade das relações humanas. Quando as coisas estão mal, tem de haver algum radicalismo para conseguir mudá-las. Nós estamos numa fase de algum radicalismo. Havemos de conseguir passá-la, espero eu.

E a sua mãe era muito crítica… Contou numa entrevista que pouco tempo depois de ter começado a trabalhar, que a sua mãe ligava para a RTP, para fazer queixa… A minha mãe era muito crítica, mas era mãe. Queixa de mim nunca fez, é capaz de ter feito a programas, quando eu era diretora. Havia escolhas que eram minhas. Ela era muito ativa nessas coisas. Mas acho que tinha um grande orgulho em mim, porque teria gostado de ter tido uma carreira fora de casa. Era muito inteligente e poderia perfeitamente ter feito muitas coisas. 

E dizia que, no princípio, as coisas foram acontecendo normalmente. A certa altura da sua carreira começou a ter os objetivos mais bem definidos? Eu nunca tive objetivos muito delineados. Não tive tempo. Quem é que depois de estar a trabalhar como assessora de imprensa de uma primeira-ministra de esquerda, como foi a engenheira Maria da Silva Pintassilgo, pode estar à espera de ser convidada? Durante o tempo do governo da direita AD, com um Presidente Conselho de Administração da RTP nomeado pela AD, pelo Primeiro-Ministro de então Sá Carneiro, como estaria à espera de ser convidada para diretora de programas? Eu não estava à espera de todo. Isto desafia toda a lógica. Portanto, as coisas aconteceram. Também é preciso sorte. Eu sou uma pessoa muito lógica, bastante cerebral em termos de trabalho, mas há aqui fatores que a gente não controla. Há sorte na vida. Porque é que umas pessoas têm cancro e as outras não têm? É sorte… A minha primeira reação foi dizer que não, porque pensei que não fosse capaz. Era jornalista com poucos anos de experiência. De repente vou dirigir 600 pessoas? Vou tomar conta do orçamento da direção de programas, ter de escolher programas de tudo…  Mas depois pensei melhor: ‘Eu nunca mais vou ter uma oportunidade destas. Vamos lá!’. E eu era uma perigosa esquerdista, na altura era o que as pessoas me chamavam…

Especializou-se em entrevistas, tendo interrogado personalidades como o antigo presidente francês François Mitterrand, a antiga primeiro-ministro britânica Margaret Thatcher e a escritora Isabel Allende. O que é que elas têm de tão especial? Eu acho que é esse desejo, que nós todos temos, de conhecer a alma humana. Claro que não se vê a alma…

Mas olha-se nos olhos…Exatamente! E o nosso desejo é sempre cavar mais fundo e mais fundo, perceber melhor aquela pessoa. Por que é que ela defende certas ideias? Porque é que ela escreve de certa maneira ou canta de uma forma extraordinária? Eu também tive a sorte de entrevistar muitas pessoas no meio da cultura, pessoas fantásticas, pensadores incríveis. Se me perguntarem quais foram as entrevistas mais gratificantes da minha vida, eu não direi que foram políticos, foram grandes pensadores. Foi o Agostinho da Silva, foi o Eduardo Lourenço, foi o Jorge Luis Borges. Eu sempre tive a sensação de que poucas situações ultrapassam a intimidade de um estúdio de televisão, em que se faz uma entrevista entre duas pessoas. Há uma intensidade numa entrevista feita olhos nos olhos que poucas coisas igualem e é difícil as pessoas mentirem muito. Acontece, há pessoas que são insondáveis. Eu fiz entrevistas em que me senti completamente derrotada. Não foram muitas, mas fiz. No fim sentia que não tinha conseguido saber nada de importante. Há pessoas com chavões…

Isso é bastante frustrante…Claro! Ainda hoje! Ainda me lembro dessas circunstâncias. Aquilo que eu sentia era: ‘Eu nunca devia ter feito esta entrevista!’. Há pessoas que têm com cada carapaça, estão tão defendidas… Acho que os seres assim não são interessantes, portanto, nem deviam merecer uma hora de televisão. Não é?

E houve alguma que tenha mudado assim a sua vida? Não. Quer dizer… A minha visão das coisas e das pessoas talvez… A entrevista da minha vida aconteceu no período em que passei alguns dias de muita proximidade com o Jorge Luis Borges, em Buenos Aires. Eu acho que foi a entrevista mais interessante da minha vida. Mas claro que gostei das grandes entrevistas políticas. No outro dia, soube através de uma rapariga cujo pai tinha sido muito amigo do Dr. Álvaro Cunhal, que ele gostava de mim quando eu o entrevistava. Isso agradou-me. Dizia que tinha respeito porque sabia que eu me preparava bem. Lembro-me que o gostava de entrevistar porque percebia isso. Que ele levava aquilo com seriedade, estudava as coisas e, dentro da sua lógica, era honesto a responder. Se a gente conseguir que a pessoa se revele com honestidade, num político, isso já é muito bom. Raramente dizem aquilo que não querem dizer. Aconteceu-me uma coisa que eu acho que é histórica, na altura fez primeiras páginas de jornais. O então ministro das Finanças, que era o professor Jacinto Nunes, disse, no meu programa, em direto, entrevistado por mim, que ia desvalorizar o escudo no dia seguinte. Isto é tudo o que um político não pode fazer. E eu não queria acreditar. Ficou tudo abismado. Não sei o que é que passou pela cabeça dele…

Como já disse, também esteve no seio político. Foi porta-voz do Governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, em 1979. Foi também eleita deputada à Assembleia da República, nas listas do PSD pelo Círculo de Castelo Branco, em 2002. Diz que foi a pior altura da sua vida. Porquê? Isso foi no Parlamento… Foi a pior altura da minha vida porque não me deixavam fazer nada. É a pior coisa que me podem fazer. Foi também a razão que me fez sair da RTP, eu estava lá apenas a ganhar o meu ordenado. No último ano não me deram nada para fazer. No Parlamento falava-se de uma renovação da classe política, escolher pessoas que não fossem dependentes só da política, mas que viessem de outros meios profissionais… Foi nesse pressuposto que eu e mais uma série de pessoas fomos convidadas pelo Dr. Durão Barroso a integrar as listas do PSD nas eleições de 2002. Mas, depois, o grupo parlamentar não me deixava fazer nada. E não era por ser no PSD. Porque ao mesmo tempo estava o Vicente Jorge Silva no PS, a quem aconteceu exatamente a mesma coisa. Pessoas habituadas a fazer coisas, jornalismo, entrevistas, a dirigir a direção de programas ou revistas como a Marie Claire, não conseguem ficar sem fazer nada. Foram os dois anos mais secos da minha vida. Felizmente salvou-me a amizade com alguns deputados.

Sente que foi descartada de alguma maneira da RTP? Eu passei períodos de grande sofrimento e solidão dentro da RTP. Tive essas oportunidades, que foram excelentes e que me marcaram a todos os níveis, mas tive períodos em que fui de facto marginalizada, posta à parte, em que não me deram trabalho.

E como é que se lida com isso? Mal. Sofri muito. Poderia e deveria ter posto um processo à RTP a certa altura por assédio moral, porque era assédio moral. Isolavam-me, tiraram-me das instalações da sede onde eu estava, longe de toda a gente. Isto é assédio. Na altura propus à minha advogada, mas ela disse que não havia matéria para isso. Se fosse hoje, tinha seguido com isso em frente. Pouco tempo depois, fui convidada pelo presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, na altura o professor Ferrer Correia, para criar a direção de Comunicação da Gulbenkian, que sendo a instituição fantástica que era e é, não tinha um serviço de comunicação. E consegui que a RTP me desse uma licença sem vencimento e tive na Gulbenkian três anos num trabalho altamente satisfatório. Depois a RTP voltou a dar-me trabalho, mesmo estando eu na Gulbenkian. Assinei um contrato só para fazer programas. As carreiras não são sempre lógicas. Era bom que fossem, mas não são.

As coisas mudaram muito… O que é que a entristece mais atualmente na televisão? Eu não sou nada saudosista em relação ao passado, sabe? Não sou. Há coisas que eu detesto na informação, por exemplo. Telejornais de hora e meia ou duas horas? Detesto. Se fosse eu a mandar só tinham mesmo 30 minutos. Mas isto são critérios de marketing, de audiências. Nós não somos um país diferente dos outros para termos matéria para isso. Uma informação interessante, nova e pertinente todos os dias…  Não temos! Houve aqui alguém que um dia começou a fazer esticar os telejornais porque aquilo dá audiência. Espalhou-se. ⅔ do que lá está não tem cabimento para um telejornal. Às vezes nem são notícia coisa nenhuma. As pessoas deixam de saber o que é notícia. Depois, não gosto da proliferação de comentadores que muitas vezes substituem o papel dos jornalistas e eu não percebo porque é que os jornalistas aceitam e gostam. Acho que o comentário político em Portugal também vai empobrecer o jornalismo. Não é um comentário de cinco minutos sobre um especialista daquele tema do dia que é importante ouvir. Isso continua a ser importantíssimo. É um generalista que vai para ali durante meia hora, ou seja o que for, dizer coisas que podiam ser ditas de outra maneira. Na parte da programação eu nunca gostei de reality shows e, felizmente, nunca tive de fazer essas opções. Dão muita audiência, mas também é muito empobrecedor. Saber o que é que se passa na vida dos outros, de preferência dentro da cama? É uma coisa que me preocupa, porque acho que se banalizaram as relações.

A chamada telenovela da vida real…Eu prefiro 1000 vezes a ficção à vida real, na maior parte dos casos. É por isso que a ficção é importante e que pode ser um grande ato de criação, porque justamente ultrapassa a banalidade da vida real. 

Enquanto autora de inúmeros livros, qual a sua posição relativamente ao politicamente correto e à consequente cultura do cancelamento? O que acha daquilo que estão a fazer, em alguns países, aos grandes clássicos? O horror dos horrores da América. Reescrever a história é completamente impossível. É claro que se fizeram coisas horríveis… Mas agora não vamos estar a alterar as coisas dessa maneira. Nalguns aspetos é bom porque se está a tentar lutar contra os estereótipos da beleza, sobretudo da beleza feminina. Nos aspetos extremos, quer dizer não poder usar as palavras, não entendo. Isto do idoso e do velho faz-me muita confusão.

Como surge a oportunidade de voltar a pisar as tábuas de madeira depois de tanto tempo? Durante 40 anos, este amor pelo teatro manteve-se guardado numa gaveta? Sabia que regressaria um dia? Eu vi esta peça cinco vezes. Sou apaixonada por ela. A primeira vez foi em 91, em Paris, a segunda também foi em Paris, com outro ator, depois em 2000, em Londres, mais tarde, em Nova Iorque, e muito recentemente, fui ver a peça em Barcelona. Apaixonei-me por esta peça e sempre achei que gostaria de fazê-la. A certa altura, conheci o Paulo Sousa Costa e a Carla Matadinho e ficámos amigos. Em 2011 falei-lhes disso, mas pelas circunstâncias da vida, pelos trabalhos, demorou algum tempo a concretizar-se. No ano passado, o Paulo desafiou-me a seguir com a ideia em frente e como eu estava a escrever um livro, mas não tenho propriamente pressa, decidi aceitar. 

Então sente uma responsabilidade enorme pela peça estar espalhada pelo mundo… Uma pessoa tenta sempre fazer o melhor possível. Não nos podemos comparar. Vi atuações assombrosas, outras maravilhosas… A nossa encenação é muito diferente. A nossa versão é muito mais interpretada do que as outras todas.

E como é que tem sido? Como se sente? É bom, às vezes é melhor, o público reage mais, outras vezes reage menos. As pessoas reagem mais à parte mais cómica, às coisas sexuais. Isso é normal. A segunda parte é muito mais intensa. As pessoas às vezes dizem que choram. Eu acho que percebo. Eu acho que se fosse ver também chorava. É difícil.

E qual a relação que tem com a sua personagem, Melissa? É um personagem muito complexo. É difícil, faz uma série de coisas que eu não faço. Não bebo. Não fumo. Mas entendo a angústia desta mulher. Tenho um bocadinho esse lado sombra. Todos nós temos um lado sombrio, um lado depressivo. Devemos fazer coisas para não cair. Esta Melissa é muito enriquecedora e muito desafiante.

Os nervos são maiores do que as primeiras vezes em que esteve em direto na televisão? Muito mais. É completamente diferente. No teatro estou sem rede. Na televisão eu entrava no ar e sabia o que pretendia, sabia o que dizia. Aqui também sei o que digo, mas é mais difícil comandar a emoção do que a razão.  

E o que é que gostaria que viesse a seguir? Eu nunca pensei assim e, felizmente, a vida tem me surpreendido sempre. Gosto de ser surpreendida pela vida.