Pela primeira vez desde fevereiro de 2022, durante quase 24 horas, milhões de ucranianos acreditaram que a guerra com a Rússia poderia estar perto de chegar ao fim.
Segundo o The Guardian, das 21 horas de sexta-feira – altura em que o chefe do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, anunciou a sua marcha até Moscovo –, até às 20 horas de sábado – quando as mesmas tropas mercenárias com os seus tanques e veículos blindados estavam a pouco mais de 300 quilómetros da capital russa –, o país que tem sido devastado pelas tropas russas, vislumbrava o fim do regime de Putin. Recorde-se que desde o início da invasão, a Ucrânia anseia por instabilidade interna na Rússia, com a esperança de que “a turbulência política pudesse de alguma forma minar o poder de Putin e, como resultado, acabar com o conflito”.
Um dos primeiros a reagir à notícia foi o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy: “A fraqueza da Rússia é óbvia”, afirmou nas suas redes sociais. “Uma fraqueza em grande escala. E quanto mais a Rússia mantiver as suas tropas e mercenários na nossa terra, mais caos, dor e problemas terá para si mesma mais tarde”.
No entanto, não foi preciso muito tempo até se desiludirem – com Prigozhin a concordar deixar a Rússia para a vizinha Bielorrússia, numa negociação aparentemente mediada pelo Presidente daquele país, Alexander Lukashenko.
De acordo com o jornal britânico, acredita-se que, neste momento, Putin “navega pelas implicações do mais sério desafio à sua autoridade desde que chegou ao poder em 2000”. Mas o que se segue? Qual o destino do líder do grupo Wagner? Em que ponto se encontra a contraofensiva da Ucrânia e de que forma o acontecimento a favorece?
O futuro incerto de Prigozhin Segundo o jornal russo Kommersant, o processo criminal contra Yevgeny Prigozhin por rebelião continua em aberto e o líder do grupo Wagner permanece sob investigação. No sábado, Vladimir Putin prometia esmagar aquilo a que classificou como uma “traição”, após Prigozhin ter anunciado que os seus combatentes tinham tomado o controlo da cidade de Rostov, no Sul do país, e se dirigiam para Moscovo, numa “marcha pela justiça”, com o objetivo de afastar os comandantes “corruptos” e “incompetentes”. “A traição do Grupo Wagner foi uma punhalada nas costas de nosso país e de nosso povo”, afirmou o líder russo num discurso transmitido para toda a Rússia na manhã de sábado, comparando ainda as ações dos mercenários à Revolução Russa de 1917, que derrubou o czar Nicolau II na Primeira Guerra Mundial.
Porém, ao abrigo do acordo mediado por Lukashenko, o Governo russo declarou que o processo criminal contra Prigozhin seria “arquivado” e que este seria transferido para a Bielorrússia. Ou seja, os combatentes do grupo Wagner “regressariam às suas bases e não seriam também alvo de qualquer ação judicial”, afirmou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Quanto a Prigozhin – que, segundo estão a avançar meios de comunicação social russos e do Ocidente, incluindo a agência de notícias italiana ANSA, terá sido visto no Green City Hotel, em Minsk, capital da Bielorrússia –, forneceu poucos detalhes sobre o seu acordo para interromper o avanço. Os mercenários do Grupo Wagner vão então continuar as suas operações no Mali e na República Centro-Africana, confirmou esta segunda-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, em entrevista ao canal russo RT. A informação agora avançada pela RIA Novosti contraria, portanto, os dados conhecidos até este momento, já que anuncia que o processo judicial contra Yevgeny Prigozhin por rebelião armada “não foi encerrado”.
Na segunda-feira, o líder do Grupo Wagner publicou um áudio no Telegram, com a duração de 11 minutos, onde apresenta os motivos para a rebelião do último sábado e assegura que só recuou para “evitar um banho de sangue dos soldados russos”. O responsável alertou ainda que o motim “colocou a nu as falhas de segurança” da Rússia. Segundo Prigozhin, “ninguém do Grupo Wagner aceitou assinar qualquer contrato com o Ministério da Defesa da Rússia”. “Não marchámos para depor a liderança russa. (…) Não demonstrámos hostilidade, mas fomos atingidos por mísseis e helicópteros. Foi este o gatilho. (…) O objetivo da marcha era evitar a destruição do grupo Wagner. Estava condenado a desaparecer a 1 de julho”, disse ainda.
O Grupo Wagner é “uma companhia de combate independente com condições diferentes das forças armadas russas”, disse, por sua vez, o major reformado do Exército dos EUA, Mike Lyons, no sábado. Por exemplo, os mercenários são mais bem remunerados do que os militares — o que significa que uma assimilação completa seria difícil. “Talvez alguns se estilhacem”, acrescentou. “Essas pessoas são leais ao homem, Prigozhin, não ao país, não à missão. Acho que temos muito mais perguntas que não foram respondidas agora”.
Para os especialistas, o perigo não acabou para o chefe do Grupo Wagner: “Putin não perdoa a traidores. Mesmo que diga: ‘Prigozhin, vai para a Bielorrússia’, ele ainda é um traidor e acho que Putin nunca perdoará isso”, acredita Jill Dougherty, ex-chefe da sucursal da CNN em Moscovo e especialista de longa data em assuntos russos. No seu entender, é mesmo possível que vejamos Prigozhin “ser morto na Bielorrússia”, explicando que “é um dilema difícil para Moscovo” porque, enquanto o chefe dos mercenários tiver algum tipo de apoio, “constitui uma ameaça, independentemente de onde esteja”.
O enfraquecimento do líder russo Para Jill Dougherty, embora tenha sobrevivido ao impasse, o Presidente russo parece agora “fraco”, não apenas aos olhos do mundo e dos seus inimigos, mas mesmo face ao seu próprio povo e militares. “Isso pode representar um risco se houver céticos ou rivais em Moscovo que veem uma oportunidade de minar a posição de Putin”, acrescentou.
De acordo com a BBC, o ministro russo da Defesa fez a primeira aparição televisiva depois da rebelião protagonizada pelo Grupo Wagner – Sergei Shoigu esteve na Ucrânia para inspecionar as tropas de Moscovo.
Segundo excertos fornecidos pelo Ministério da Defesa e transmitidos pelo canal de televisão Rossia 24, Shoigou – que foi duramente criticado pelo líder do Grupo – deslocou-se a um posto de comando das forças russas na Ucrânia e “reuniu-se com os líderes de uma das unidades”. Durante a visita, o responsável “constatou uma elevada eficiência na identificação e destruição de equipamento militar e pontos de posicionamento inimigos nas áreas táticas da zona de responsabilidade” da unidade, declarou, em comunicado publicado na plataforma Telegram, o Ministério da Defesa russo, que também divulgou um vídeo.
Ucrânia recupera terreno Enquanto isso, as Forças Armadas ucranianas alegam ter avançado entre 600 e mil metros, a sul e a norte de Bakhmut – cidade ocupada em maio pelos mercenários do Grupo Wagner.
Segundo afirmou no domingo um soldado ucraniano à AFP, “os combates estão a decorrer segundo o plano”. A agência acrescenta que foram registados intensos confrontos na zona de Bakhmut. De acordo com Kiev, a rebelião na Rússia ofereceu “uma janela de oportunidade” à contraofensiva.
Um dia depois, a vice-ministra ucraniana da Defesa revelou que as tropas de Kiev tinham recuperado cerca de 130 quilómetros quadrados às forças russas ao longo da linha da frente. “A situação no sul não sofreu alterações significativas na última semana”, revelou Hanna Maliar à emissora nacional. A governante indica ainda que, ao longo da linha da frente na zona oriental, que inclui Lyman, Bakhmut, Avdiivka e Maryink, ocorreram cerca de 250 confrontos na última semana. “Os combates prosseguem”, frisou.
Além disso, Hanna Maliar adiantou que a contraofensiva no leste do país no final da passada semana permitiu “a recuperação de um a dois quilómetros nas áreas de Bakhmut, Yahidne, Orikhovo-Vasylivka, Bohdanivka, Klishchiivka e Kurdiumivka”. As forças ucranianas já terão também recuperado o controlo de Rivnopil, uma pequena povoação rural na região de Donetsk cerca de 50 quilómetros a norte de Mariupol.
Ao Expresso, uma combatente na linha da frente ucraniana reconheceu que a contraofensiva poderá estar prestes a acelerar, “como uma onda que demora a formar-se, mas que rebenta em força”.