Desde fevereiro de 2022 que as notícias ao redor do mundo nos transportam para o terror que se tem vivido na Ucrânia depois da invasão russa, liderada por Vladimir Putin. No entanto, até sábado passado, nenhum acontecimento havia trazido alguma esperança para o enfraquecimento do Presidente russo. A verdade é que, no final da semana passada, durante quase 24 horas, milhões de ucranianos acreditaram que a guerra com a Rússia poderia estar perto de chegar ao fim. De acordo com o The Guardian, das 21 horas de sexta-feira – altura em que o chefe do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, anunciou a sua marcha até Moscovo -, até às 20 horas de sábado – quando as mesmas tropas mercenárias com os seus tanques e veículos blindados estavam a pouco mais de 300 quilómetros da capital russa -, o país que tem sido devastado pelas tropas russas vislumbrava o fim do regime de Putin. No entanto, não foi preciso muito até que ‘a marcha pela justiça’, como lhe chamou o líder do grupo, acabasse. Depois disso? Especulações sobre o paradeiro de Prigozhin, que garantiu, numa mensagem de voz publicada no Telegram, «que o seu objetivo nunca foi derrubar o poder de Putin»; dúvidas relativamente ao futuro dos seus mercenários e um avanço na contraofensiva de Volodymyr Zelenskiy.
Recorde-se que Prigozhin concordou deixar a Rússia para a vizinha Bielorrússia, numa negociação aparentemente mediada pelo Presidente daquele país, Alexander Lukashenko.
Depois disso, segundo avançaram os meios de comunicação social russos e do Ocidente, incluindo a agência de notícias italiana ANSA, dias depois da rebelião, o responsável do grupo Wagner havia sido visto no Green City Hotel, em Minsk, capital da Bielorrússia. Porém, foi apenas na terça-feira que o Presidente do país confirmou que tanto Prigozhin como outros mercenários russos já se encontram na Bielorrússia. «Garantias de segurança foram dadas, como prometido por Vladimir Putin. (…) Sim, de facto, ele está hoje na Bielorrússia», disse Lukashenko numa cerimónia militar, citado pela agência de notícias oficial Belta. Na altura do acordo, Lukashenko revelou que Prigozhin e algumas das suas tropas seriam bem-vindas para permanecer na Bielorrússia «por algum tempo» e às suas próprias custas.
Além disso, na terça-feira, as autoridades russas anunciaram que encerraram uma investigação criminal sobre o levantamento armado e «não seriam apresentadas acusações contra Prigozhin» ou «contra as suas tropas após ter sido fechado o acordo».
Um mártir?
Um dia depois, segundo o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês), o Presidente da Rússia percebeu que não podia «eliminar» Prigozhin e, por isso, vai «destruir a sua reputação» para que este deixe de ter «apoio popular» e para que deixe de ser «seguido» pelos combatentes do grupo Wagner.
A análise do instituto revela que Putin, decidiu que, nesta altura, «não consegue eliminar» o líder do grupo Wagner «sem fazer dele um mártir» e, por isso, começa a tentar apresentá-lo como «corrupto e mentiroso para destruir a sua reputação entre o pessoal da Wagner e na sociedade russa».
Conselhos de ‘amigo’
No sábado, o líder do Kremlin prometia esmagar aquilo que classificou como uma «traição»: «A traição do Grupo Wagner foi uma punhalada nas costas de nosso país e de nosso povo», declarou Putin num discurso transmitido para toda a Rússia, comparando ainda as ações dos mercenários à Revolução Russa de 1917, que derrubou o czar Nicolau II na Primeira Guerra Mundial. Lukashenko diz que Putin queria «eliminar» Prigozhin durante a rebelião.
No entanto, num encontro com oficiais do exército e jornalistas na terça-feira, de acordo com a imprensa estatal bielorrussa, Alexander Lukashenko afirmou ter persuadido o Presidente russo a não o fazer. «Sugeri a Putin que não se apressasse. ‘Vamos’, disse eu, ‘vamos falar com Prigozhin, com os seus comandantes’», descreveu. O conhecido aliado de Putin disse que aconselhou o Presidente russo a pensar «para além do nosso nariz» e que a eliminação de Prigozhin poderia levar a «uma revolta generalizada dos seus combatentes». O Presidente bielorrusso considerou ainda que as tensões entre a empresa de mercenários russa Wagner e o Exército de Moscovo foram «mal geridas» e foi isso que provocou «o confronto» do fim de semana. Anteriormente, revelou, ordenou ao Exército de Minsk para se «preparar para o combate»: «Eu dei todas as ordens para que o Exército da Bielorrússia esteja totalmente pronto para o combate», disse Alexander Lukashenko, citado pela Belta.
De acordo com o ISW, o Kremlin «lançou uma campanha de informação doméstica contínua na Rússia para perdoar os combatentes e comandantes da Wagner num esforço para os atrair a assinar contratos com o Ministério da Defesa russo»: «O esforço deliberado para separar Prigozhin do Grupo Wagner provavelmente visa estabelecer condições informativas para que o Kremlin possa acusar Prigozhin de corrupção ou conspiração com a Ucrânia ou o Ocidente», lê-se no texto.
«Putin provavelmente decidiu que não consegue eliminar Prigozhin diretamente sem torná-lo num mártir neste momento», continua a análise, que destaca que o líder do Wagner «ainda mantém algum apoio dentro da sociedade russa e das forças regulares russas» e, por isso, o Kremlin terá de «garantir que esses grupos se desiludem com Prigozhin para privá-lo efetivamente de seu apoio popular na Rússia».
O ISW acredita que muito deste apoio terá surgido devido ao facto de Prigozhin ter criticado o comando militar, «uma mensagem que provavelmente atraiu muitos militares e as suas famílias desiludidos com a mobilização, baixas, escassez de suprimentos e grande perda de vidas com pouco para mostrar». Na segunda-feira, o líder do Grupo Wagner publicou um áudio no Telegram, com a duração de 11 minutos, onde apresenta os motivos para a rebelião do último sábado, assegurando que só recuou para «evitar um banho de sangue dos soldados russos». O responsável alertou ainda que o motim «colocou a nu as falhas de segurança» da Rússia. Segundo Prigozhin, «ninguém do Grupo Wagner aceitou assinar qualquer contrato com o Ministério da Defesa da Rússia». «Não marchámos para depor a liderança russa. (…) Não demonstrámos hostilidade, mas fomos atingidos por mísseis e helicópteros. Foi este o gatilho. (…) O objetivo da marcha era evitar a destruição do grupo Wagner. Estava condenado a desaparecer a 1 de julho», disse ainda.
A análise do ISW acrescenta ainda que o Kremlin «provavelmente continuará a atacar a personagem de Prigozhin para quebrar o apoio popular, desencorajar o pessoal de Wagner de segui-lo para a Bielorrússia e destruir seu poder financeiro».
Processo arquivado
Num comunicado citado esta terça-feira pela agência noticiosa russa RIA, «estão a decorrer os preparativos para a transferência de equipamento militar pesado da empresa militar privada Wagner para unidades das forças armadas russas». Segundo a mesma agência, o departamento de investigação do Serviço Federal de Segurança (FSB) desistiu do processo-crime de insurreição armada contra o líder do grupo Wagner.
Em comunicado, o FSB explica que o processo foi arquivado porque «os participantes cessaram as ações diretamente destinadas a cometer o crime». A decisão acontece depois de o Kremlin ter emitido um comunicado na sequência do desmantelamento da ação de insurreição contra Putin, onde garantia que os combatentes que participaram no motim «não seriam processados e seriam autorizados a regressar à base». Os mercenários tinham, por isso, duas opções: juntar-se ao exército russo, extinguindo por completo o grupo Wagner, ou ir para a Bielorrússia.
Um acordo ‘perigoso’
No entanto, isto não significa que as águas acalmem. De acordo com a dirigente da oposição da Bielorrússia, Svetlana Tikhanovskaya, o líder da Wagner e o Presidente bielorrusso «não são aliados e podem ser desleais um contra o outro». «A qualquer momento, o Lukashenko pode trair Prigozhin ou Prigozhin pode trair Lukashenko. Eles não são aliados. Não confiam um no outro», afirmou.
Tikhanovskaya, que reivindicou vitória sobre Lukashenko nas eleições presidenciais de 2020, salientou que ainda «há muito por esclarecer» sobre o alegado acordo.
Para a dirigente da oposição bielorrussa, exilada na Lituânia, a decisão de Lukashenko de ajudar Vladimir Putin é um «gesto de conveniência pessoal para salvar o regime de Minsk». «Não agiu para salvar a face de Putin, nem para salvar Prigozhin, nem para evitar que a guerra civil rebentasse na Rússia (…) Só se preocupou com a própria sobrevivência pessoal, porque Lukashenko sabe que, se as fações da Rússia entrarem em conflito, ele pode pagar o preço», acredita. «Se os combatentes de Prigozhin invadissem a Bielorrússia em grande número, poderiam ameaçar a Europa», acrescentou Tikhanovskaya.
«A presença do próprio Prigozhin ou do grupo Wagner no nosso território é, antes de mais, uma ameaça para o povo bielorrusso e para a nossa independência», alertou ainda.
Depois da tensão, no fim de semana, Vladimir Putin vem agora dizer que fez de Prigozhin um homem rico.
Na quarta-feira, o líder russo revelou que o grupo Wagner recebeu quase mil milhões de euros de Moscovo num ano. O chefe de Estado russo reconheceu que tinha «financiado integralmente» o grupo Wagner, destacando que a empresa Concord, do grupo de Yevgeny Prigozhin, «ganhou 80 mil milhões de rublos, cerca de 850 milhões de euros».
«Espero que durante estas operações ninguém tenha roubado nada ou, por assim dizer, roubado pouco», afirmou, garantindo que iria cuidar da verificação de tudo. Recorde-se que, antes do conflito na Ucrânia, o Kremlin negou durante anos qualquer ligação com o grupo Wagner, que, além do Dombass, no leste da Ucrânia, tem atuado na guerra da Síria e em vários conflitos em África.
Onde está Surovikin?
Segundo a Reuters, na quinta-feira, o Kremlin recusou-se a dar detalhes sobre o paradeiro do general russo Sergei Surovikin, cujo localização não foi divulgada desde a rebelião. Recorde-se que esta quarta-feira, os EUA revelaram que Sergei Surovikin sabia dos planos de Prigozhin contra o Kremlin. Os serviços de informação norte-americanos estão, no entanto, a tentar perceber se o general ajudou a planear as ações do líder do grupo Wagner.
Apelidado de ‘General Armageddon’ pela imprensa russa pelas suas táticas agressivas na guerra da Síria, Surovikin – que é vice-comandante das forças russas na Ucrânia – estaria desaparecido desde sábado, depois de ter surgido num vídeo onde apelou a Prigozhin para cancelar a sua «marcha pela justiça».
De acordo com a agência de notícias britânica, na gravação, Surovikin, «parecia exausto» e acredita-se que este o tenha feito «sob coação». Desde então, houve relatos não confirmados de que este se encontra a ser interrogado pelos serviços de segurança.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, encaminhou as perguntas sobre Surovikin ao Ministério da Defesa, que até agora não fez nenhuma declaração.
Na quinta-feira, contra tudo aquilo que foi noticiado, em entrevista ao Baza, citada pela Sky News, a filha Surovikin, Veronika, afirmou que ninguém prendeu o pai e que este se encontra bem. Ou seja, que os relatos da detenção «não passaram de boatos».
Além disso, as autoridades americanas acreditam ainda que outros generais russos terão estado envolvidos no motim do último fim de semana.