A primeira vez que estive em Sehore estava um calor tão bruto e a humidade tão grande que quase era capaz de apostar que os ovos ficavam cozidos dentro das galinhas. Não há nada de muito especial para se ver em Sehore e eu estava a caminho de Bhopal, capital do Estado de Madhya Pradesh que, essa sim, tem muito para ver embora eu esteja cem por cento de acordo com a velha frase de Henry Michaux: «Na Índia não há nada para ver; é tudo para interpretar». Por isso interpretei todo o calor e toda a humidade que me rodeavam e fui andando pelo meio de centenas e centenas de pessoas que, muito evidentemente, interpretavam o calor e a humidade de uma forma muito diferente da minha. Sabia que Sehore tinha algo que ver com a história do futebol mas demorou um tempo muito razoável para descobrir o quê na minha memória decididamente afectada pela interpretação de tanto calor e tanta humidade que se me desse ao luxo de retomar o ritmo normal da respiração muito provavelmente cairia redondo, morto por afogamento em suor.
O meu processo de reposição de factos antigos exige lembrar algo que me faça lembrar algo para poder recordar algo. Comecei por Stanley quando encontrou o dr. Livingstone em Ujiji. David Livingstone era um escocês que andava por África às custas da Geographic Society tentando descobrir as nascentes do Nilo. Como já há uns anos que dava notícias, Henry Morton Stanley ofereceu-se para encontrá-lo. E encontrou. Numa aldeia de palhotas, com garotos retintos e mulheres de peitos à mostra. Tentou ter graça e não se saiu mal com a pilhéria com que se dirigiu ao único homem branco que viu na sua frente: «Dr. Libingstone, I presume?». Stanley era meio galês e não se chamava Stanley, era John Rowlands, mas agora esse pormenor não vem grandemente a propósito. A propósito vem a canção dos Moody Blues que me ocupou, agora mesmo, uma parte do cérebro: «Doctor Livingston, I presume/Stepping out of the jungle gloom/Into the midday sun/What did you find there?/Did you stand a while and stare?/Did you meet anyone?». Pois, lá está, é mesmo assim que se mexem as rodas dentadas da minha memória porque já vou por caminhos que não eram os que desejava, preciso de retomar o rumo, eu queria mesmo era falar de Sir Henry Mortimer Durand, que nasceu em Sehore no dia 14 de janeiro de 1850, mais de 21 anos antes de Stanley dar um vigoroso shake-hands ao Dr. Livingstone em Ujiji, nas margens do lago Tanganyka.
Durand gostava de futebol. Gostava mesmo muito de futebol. Mas o futebol na Índia é mais para interpretar do que outra coisa qualquer. Há gente que tem ataques de riso só por se juntar futebol e Índia na mesma frase. Pois isso é algo de bastante desagradável, se querem a minha opinião e, se já chegaram até aqui é porque querem.
Para lá do futebol, Durand levou uma vida bastante monótona, if I may say so. Era um daqueles burocratas de pai e mãe, embora o Major-General Sir Henry Marion Durand, seu progenitor até tenha passado por várias atribulações quando cumpriu serviço militar nos Bengal Engineers.
Em 1888, ou seja, há 135 anos, Mortimer Durand estava em Shimla, no norte da Índia, a recuperar de uma angina pectoris que o deixou praticamente a pão e laranjas. Não se pode dizer que fosse dono de uma imaginação prodigiosa mas uma ideia esplêndida brotou-lhe das meninges assim de repente: organizar um torneio de futebol entre equipas representativas dos vários regimentos da Indian Armed Forces, E assim nasceu a Durand Cup, que ainda hoje se disputa, e é uma competição tão, tão antiga que pede meças à Taça de Inglaterra, nascida em 1781. Na primeira final da prova, disputada em eliminatórias, os Royal Scots Fusiliers bateram a Highland Light Infantry por 2-1.
Foi preciso ter uma paciência digna de Gandhi para esperar pelo momento em que, com um toque de soberana generosidade, os britânicos aceitassem a participação de clubes indianos na Durand Cup. E foi preciso esperar até 1940 para se assistir ao escândalo: o Mohammedan Sporting Club, de Calcutá, do Estado de West Bengal, venceu o Royal Warwickshire Regiment por 2-1 na final e a festa foi de tal ordem que milhares e milhares de indianos saíram para comemorar o triunfo sobre o domínio do Raj como se comemorassem a independência do Império Britânico, algo que sucederia sete anos depois. Claro que nessa altura já Sir Henry Mortimer Durand batera as botas há que tempos – 1921. Tinha sido embaixador em Espanha e nos Estados Unidos mas definhara com saudades da sua Índia. Os Moody Blues cantam-me na memória: «There are Indians by the score/In many places that I saw/I’ve still not found what I’m looking for». Durand era um indiano muito especial, essa é que é essa. Um daqueles indianos que não têm nada para ver mas têm tudo para serem interpretados.