E ncontramo-nos no Atelier-Museu Júlio Pomar, que, soube-se por estes dias, vai absorver o património da Fundação Júlio Pomar, que será extinta até ao final do ano para evitar uma situação de concorrência entre as duas instituições. Depois, Alexandre Pomar convida-nos a atravessar a rua estreita para nos recolhermos no seu apartamento. Na sala há um quadro famoso pintado pelo seu pai, Varina Comendo Melancia, de 1949, mas também uma casa de bonecas com um nível de detalhe espantoso. «Foi feita pela minha mulher, a Luísa, que era médica», explica-nos o crítico de arte. «Gostava de fazer casas de bonecas. Esta é muito parecida com a casa dela no Porto».
Mas é na cozinha, de portas abertas para o pequeno jardim do pátio, que nos instalamos para conversar, tomando como ponto de partida Júlio Pomar. Depois do Novo Realismo (ed. Guerra & Paz), um livro que reúne 18 artigos de Alexandre sobre a obra do pai, a que se juntam dois anexos, um de textos curtos inéditos ou dispersos de Júlio Pomar, outro de correspondência.
Uma coisa um bocado intrigante no percurso de Júlio Pomar, a meu ver, é a maturidade dele logo com 19, 20 anos. Parece que nasceu ensinado.
Na realidade ele não teve aulas de pintura, saiu da Escola de Belas-Artes estava no segundo ano.
Dizia que o ensino era uma «chatice de morte».
No Porto não era assim tanto. Mas ele foi suspenso em 48 e não quis regressar. Foi na altura em que fez o cinema Batalha. É de facto surpreendente como é que se encomenda uma decoração mural daquele tamanho a um tipo que tinha 19 anos. É um bocado um escândalo! Mas pronto, lá ficou, foi apagado e agora recuperado.
A António Arroio também deve ter tido aí um papel importante.
Muitos dos artistas da altura – o Vespeira, o Fernando de Azevedo, etc. – saíam da António Arroio. E quando passavam para a Escola de Belas-Artes eram todos reprovados. Havia ali uma hostilidade de classe aos que vinham da Casa Pia e da António Arroio com ensino médio e muita gente foi fazer o curso para o Porto nessa altura.
Portanto, a formação dele restringiu-se a isso.
Sim, à António Arroio e depois um ano em Lisboa e um ano no Porto. Logo no primeiro ano ele e os colegas fizeram uma exposição, o Almada Negreiros comprou-lhe um quadro e levou-o para a exposição do SPN [Secretariado de Propaganda Nacional, liderado por António Ferro, que tinha a seu cargo a promoção das artes]. Foi tudo muito rápido.
Há muitos artistas que andam anos a batalhar para fazer nome.
Também há casos de desaparecimento, que têm dificuldade em continuar com a carreira ou a obra. E ele dizia, aliás era uma citação de um mexicano: ‘Os pintores fazem-se, mas também se desfazem’. Por outro lado, uma luta muito grande dele logo no início era a defesa da profissionalização. Ele insistia muito que não era possível ser um bom pintor numa condição de amador, tendo outros empregos. Aliás, quando ele é afastado do ensino em 48, os amigos combinam-se e não lhe arranjam nenhum emprego. Era uma altura em que toda a gente passava para a publicidade, como o Vespeira, o Manuel de Azevedo, etc. Ele foi afastado do ensino e eles não facilitaram, não lhe arranjaram mais nada, obrigaram-no a ficar a viver da pintura e da ilustração, que era muito importante, depois da cerâmica.
Ele apontava a falta de profissionalização como uma das razões da estagnação da arte em Portugal. Conseguiu sempre viver só da pintura?
Da pintura, da ilustração, da cerâmica, da gravura. No início a cerâmica vendia-se bem. Aliás há o caso da primeira exposição em Lisboa, em 1950, 1951. Quando vai, logo a seguir, ao Porto, toda a parte da cerâmica é substituída porque tinha-se vendido. E a pintura é a mesma. E, depois da cerâmica, a gravura vendia-se muito, era também um forte sustentáculo. Por outro lado, a ilustração. Era o tempo daquelas edições ilustradas em fascículos grandes. Imensa coisa, desde o Dom Quixote, traduzido pelo Aquilino Ribeiro, ao Decameron, umas vezes com ilustrações só dele, outras vezes dele e de outros. Isso também era importante em termos económicos.
O que estabelece uma relação com a literatura. Isso obrigava-o certamente a ler os livros, a conhecer as histórias.
Há livros comprados por ele, alguns de artes plásticas, outros não – poesia, outras coisas, literatura – assinados desde 42, tinha ele 15 anos. Felizmente, conservaram-se muitos que tinham ficado em casa da Alice Jorge quando ele vai para Paris em 63. Eu usei-os para um capítulo deste livro e ofereci-os à biblioteca do museu.
O neo-realismo surge um bocadinho como ponto de referência deste livro…
Eu não escrevi este livro de propósito, usei textos que já existiam, e tinha mais artigos escritos sobre o período mais antigo. Depois fiz grandes alterações, aumentei, pus notas, notas, muitas notas. Mas ele ficou muito marcado em termos de imagem pública pelo neo-realismo, coisa que lhe desagradava muito. Porque, no fundo, ele só é neo-realista durante dez anos, depois abandona e não volta a participar em nenhum estilo colectivo. Quando os artistas não pertencem a um estilo colectivo, como o surrealismo ou a abstração lírica, torna se muito difícil defini-los. E ficam agarrados a uma fórmula que às vezes é a fórmula inicial, mas já não é a de continuidade.
Neste caso, uma fórmula com a qual já não se identificava.
Pelo contrário, desagradava-lhe muito continuar a ser referido como um pintor neo-realista, ou que se atribuísse uma excessiva importância ao neo-realismo. Por outro lado, também me interessou muito estudar o período em que ele aparece com outros artistas e escritores, caso do Mário Cesariny e do Cruzeiro Seixas, que vinham também da António Arroio. Essa emergência em 1945 é um ponto de viragem que eu acho muito forte. E o José-Augusto França, que não ia ao Porto, só falava da geração de 40.
Andava mais por Lisboa.
Não ia ao Porto, e defendia o seu grupo e os seus amigos. A história foi muito construída pelo José-Augusto França, que era o único historiador, e os seus discípulos, e houve um apagamento muito grande daquilo que se estava a passar no Porto. É nas chamadas exposições independentes que se afirma o neo-realismo, que aparece o surrealismo, com as primeiras coisas do Nadir Afonso, e a abstração, com o [Fernando] Lanhas. São jovens que saem da escola e emergem num clima que é definido pelo final da guerra e pelo optimismo de que os aliados iam forçar a saída de Salazar. A censura é muito aliviada em 45, quando Salazar promete eleições ‘tão livres como na livre Inglaterra’. Foi nessa altura que o Júlio Pomar dirigiu o suplemento de arte no Jornal do Porto, é o começo das exposições gerais de artes plásticas, é quando ele pinta o Gadanheiro, começa tudo aí. E as histórias, em geral, do neo-realismo tentam começar antes, associando com o neo-realismo literário. Mas são dois ritmos diferentes. O neo-realismo literário é muito anterior, começa no tempo da Guerra de Espanha, finais dos anos 30, enquanto este grupo de jovens e estas tendências emergem só em 45, beneficiando da euforia do fim da guerra e da informação que chegava em grande quantidade principalmente dos Estados Unidos.
Propaganda?
Na altura não se separava propaganda de informação. Era a mesma coisa. Só no fim da guerra é que as palavras se distinguem. E é por isso que o António Ferro substitui o SPN por SNI [Secretariado Nacional de Informação]. Tanto os alemães como os americanos mandavam imensas publicações de todo o género, muitas de artes e os catálogos do MoMA de Nova Iorque. Júlio Pomar conta que ele e o Vespeira passavam mais tempo na biblioteca da Academia Nacional de Belas-Artes do que na Escola de Belas-Artes.
Aprendia mais nos livros do que nas aulas?
Essas foram as referências. Todos os países europeus, em geral, e os Estados Unidos têm escolas realistas próprias. E Portugal não tem. Não tem uma tradição artística forte e principalmente os jovens artistas não se reconhecem no trabalho dos artistas mais velhos, portanto, recusam tudo e começam de novo. Isso é muito diferente do que acontece nos outros países. Em França, o que se afirma a seguir à II Grande Guerra são os artistas históricos do período anterior à guerra. Não há propriamente jovens artistas, há o regresso dos antigos. Em Inglaterra é diferente, porque depois da guerra há aquele tempo de carências e só a partir do princípio dos anos 50 é que renasce uma certa vida artística forte, e portanto já é outra coisa. Penso que o neo-realismo português, naquilo que tem de procura de modernidade e de conjugação de referências norte-americanas, mexicanas e dos realismos sociais em geral, e Picasso, é original. Esse foi um equívoco persistente, considerar que o neo-realismo era uma forma de dizer realismo socialista para passar a censura. Mas não, é claramente outra coisa.
Mas há aquela particularidade de Pomar nunca querer ser metido num ‘rebanho’, é muito cioso da sua autonomia.
Mesmo naqueles anos entre 47/48 e 53, ele caracteriza o neo-realismo pela sua abertura. Aliás, a partir dos quadros da colecção dele, que eram trocas entre artistas, acho que se consegue mostrar o enorme espírito de abertura. Tenho um Lanhas lá dentro que foi trocado por um quadro do meu pai. Eles eram muito amigos, apesar de o Lanhas ser católico e conservador.
Ele inicialmente propunha-se fazer arte para o povo.
Era o espírito do pós-guerra.
Depois acabou por perceber que esse credo era um pouco ingénuo?
Uma das coisas que mais se discutia na altura era que a arte moderna não era compreendida, não era aceite pela população. Dirigiam-se muito à classe operária e os trabalhadores não tinham relação nenhuma com a arte moderna. E essa é uma questão que eles tratam em vários momentos. Intencionalmente – e isso é uma marca do neo-realismo – as figuras deviam ser compreensíveis, legíveis. Portanto, o neo-realismo centra-se na representação de figuras populares com um caráter muito diferente daquilo que era a pintura miserabilista ou naturalista, na medida em que o povo que aparece é um povo, digamos, orgulhoso.
Dignificado?
Afirmativo, dignificado, e potencialmente em luta. Mas em 1948, com o fim da campanha de Norton de Matos e com a entrada de Portugal na NATO, percebe-se que não vai haver uma liberalização e eles reconsideram aquilo que é uma pintura dirigida ao povo num contexto que já não é de luta. Júlio Pomar faz uma autocrítica em relação à pintura que tinha feito até 1950, em que surgem muitas mulheres com crianças, meninos e não sei quê, considera que é uma fase demasiado lírica e formalista. A partir de 51, Portugal entra na NATO. É o tempo da Guerra da Coreia e das grandes campanhas dos PCs mundiais pela paz. E isso teve uma grande repercussão aqui. A partir de 51, ele pratica uma pintura de maior empenhamento social. É o tempo do ciclo do arroz, em que faziam passeios a Vila Franca de Xira para ver os trabalhadores do arroz. É uma nova fase militante, que foi muito esquecida ou mesmo desvalorizada, por exemplo pelo Mário Dionísio, que sai do Partido Comunista em 53 e acha que as outras pessoas todas deviam sair. E escreve num livro em 1990 que quem não saiu foi obrigado a cumprir as directivas do partido, o que não é verdade. E desvaloriza completamente os quadros do ciclo do arroz, que eu considero muito fortes. É um período mais militante, mas é também um período final. A partir de 55/56 já não é neo-realismo.
Olhando para a pintura posterior, segundo aqueles padrões soviéticos, seria pintura burguesa pura.
Já não tem nada a ver com o realismo socialista de representação dos heróis do povo e de uma visão da história congelada. Há sempre uma procura de fazer uma pintura moderna a partir da deformação da figura, enquanto o naturalismo representava com rigor a natureza e o visível.
Possivelmente, digo eu, porque também lhe interessava colocar um certo movimento na pintura.
Uma tensão dinâmica de formas. E depois, a partir dos anos 60, quando a pintura dele passa a ser muito mais gestual, e mais aproximada à abstração, aí interessou-se muito pela representação do movimento, pela expressão do movimento, nas tauromaquias e nas corridas de cavalos, já feitas em Paris, que são um exercício sobre o movimento.
Ele vai para Paris como bolseiro da Gulbenkian?
Não. Vai para Paris em 63, já com contrato com uma galeria muito boa que tinha vindo em 61 à exposição na Gulbenkian. O contrato foi mediado pelo Manoel Vinhas [empresário e mecenas]. Só depois de estar em Paris, um ano depois, é que tem a bolsa, que foi importante.
Olhando para trás e conhecendo a obra dele, nota alguma mudança depois de ir para Paris?
Não é imediata, ele nunca faz mudanças imediatas. Por exemplo, ele vai a Madrid em 1950 e os quadros nessa expressão em que tenta conjugar o Goya e o Columbano numa linguagem ibérica, dramática, só aparecem em 55/56. É lento.
Demora a assimilar?
Demora porque as mudanças têm a ver com a sua própria aventura e não com a adopção de um outro modelo imediato. Isso acontece também em Paris, onde ele passa das touradas para as corridas de cavalos e depois para outro tema, o catch, que é também uma questão de movimento, de tensão, mas com o qual não fica satisfeito e destrói os quadros quase todos. Seguem-se algumas mudanças em 1967, com as assemblages e as composições de restos encontrados nas praias e coisas do género. Uma influência muito forte é o Rauschenberg, um artista proto-pop. Nas cartas e numa entrevista fala muito no Rauschenberg, dando-lhe a mesma importância que ao Velázquez. E a pintura dele faz uma evolução muito grande, abandona o gestualismo das touradas e das corridas de cavalos para trabalhar com zonas de cor lisa, cores muito fortes e vibrantes. Essa aproximação a condições muito próprias da pop, mais a pop americana, não é uma mudança imediata. A pop começa a circular a partir de 1961-62, chega a Paris por volta de 63-64, e é muito rejeitada em França. E ele começa a ter essa influência já no final da década, 67-68. Há sempre uma décalage. Não houve uma mudança do tipo: ‘Agora eu vou fazer pintura pop’.
Pelo que percebi, ele tinha sempre vários trabalhos em andamento. Com certeza não ia mudar o rumo de um momento para o outro.
Havia várias coisas em andamento e havia uma produção lenta. Ao contrário do que se possa pensar, ele não pintou muita coisa. E houve alturas em que fez poucas exposições. Entre 66 e 73 não fez nenhuma. Fez em 73, depois há o período do 25 de Abril, que complicou tudo, e só em 77 faz outra exposição. Na altura os pintores faziam muito menos exposições que agora.
Eu pensava que precisavam de fazer exposições para sobreviver.
Sim, precisavam de fazer exposições para vender, embora se vendesse muito nos ateliês. Aliás, em 1966, ele vem de Paris a Portugal fazer uma exposição de quadros recentes e praticamente todos já estavam vendidos. O mercado português é pequeno, mas ele foi sempre tendo os seus admiradores e colecionadores.
E o Alexandre ia a Paris visitá-lo?
Sim. Desde o divórcio dos meus pais, passávamos sempre uma semana ou quinze dias de férias com ele aqui. E mais tarde, já em 67, com vinte anos, ia a Paris visitá-lo.
Nessa altura ele já vivia mais desafogado?
Não. Ele refere muito as dificuldades económicas que houve sempre até aos anos 70, e quando as coisas estavam melhores aparece o 25 de Abril e complica o mercado aqui. Mas há várias cartas em que diz que ainda não nos pode pagar a viagem a Paris, quando eu tinha 13 ou 14 anos. Aliás, foi publicada agora a troca de cartas entre a Menez e ele, e referem-se muito quer às dificuldades de saber o que pintar, o começar e apagar, ou não conseguir fazer, quer às dificuldades económicas, porque até muito tarde essas dificuldades eram grandes.
O meio onde o Alexandre cresceu também era assim de artistas e intelectuais?
Depois da separação dos meus pais vivi no Porto, e fui mantendo, sim, uma relação com os meios culturais do Porto – culturais e políticos, porque de facto o que me interessou durante muito tempo, e mesmo como jornalista, era a política. Fui para a Cultura por castigo no Diário de Notícias.
Muitas vezes a vida faz-se desses acasos.
Era para ser promovido a subchefe da [secção de] política, e não fui. Aí houve uma zanga. A política foi sempre o meu interesse predominante, mas profissionalmente acabei por ir parar a esta área.
E eu pensava que era por causa deste contexto familiar que tinha ido para a crítica de arte.
Não, não foi. Ir para a crítica de arte foi um escorregar. Fui de castigo para a informação geral, da informação geral fui para a cultura. Fiz muito cinema, teatro e outras coisas. E depois comecei a escrever sobre exposições e fiquei. Aquilo que me fez ficar e que proporcionou a passagem para o Expresso, que foi um grande acontecimento para mim, foi o ter publicado em 82 quatro artigos muito críticos sobre a exposição dos anos 40 do José-Augusto França [na Gulbenkian]. Foram logo elogiados pelo Cesariny e proporcionou-se a ida para o Expresso. Foi uma sorte grande.
O facto de viver aqui tão perto parece sugerir uma relação quase umbilical com o Atelier-Museu Júlio Pomar.
Não existe. Embora estivéssemos a viver no direito e esquerdo do mesmo piso – ele tinha o ateliê em cima – eu só lá ia quando tinha algum assunto a tratar. Não tínhamos nenhum relacionamento familiar permanente. E isto começou porque, a certa altura, a seguir ao 25 de Abril, ele pediu-me para ir passar uns tempos a uma casa que ele tinha comprado e portanto acabei por me instalar nessa casa, em Miraflores. Quando trocou a de Miraflores por esta, ele preocupou-se em assegurar que eu tinha parte do andar, o que também era uma vantagem para ele, porque vivia em Paris.
Assim sempre tinha a casa ocupada.
Tinha a casa ocupada e havia muitas coisas de que eu ia tratando. Mas não tínhamos, nem tivemos, e eu evitei sempre, uma excessiva proximidade. Comecei a escrever como hobby.
Para repor alguma injustiça ou retificar algum erro?
Isso é uma fase mais recente. No Expresso, como crítico, não podia nem queria escrever sobre ele. Depois comecei a colaborar nalgumas exposições, nalguns catálogos. Comissariei uma exposição ou outra, muito discretamente… Fui-me envolvendo, e comecei a organizar o catálogo raisonné como um hobby. Mas nem sequer foi um trabalho continuado porque muitas vezes dei prioridade a outros artistas e à fotografia. De maneira nenhuma me fixei no trabalho dele. Acontece que acabei por acumular uma informação muito grande, e é uma obra difícil de acompanhar, porque são quase 80 anos de trabalho com várias mudanças. Para pessoas mais novas é muito difícil entrar em sintonia ou perceber a continuidade da obra, porque é uma obra de descontinuidades.
E isso é uma parte interessante, porque uma das preocupações de um artista deve ser não se repetir. Diz-se de alguns escritores que escrevem sempre o mesmo livro…
A generalidade dos artistas fixam-se numa espécie de imagem de marca.
Um caso paradigmático é o de Noronha da Costa.
No caso dele houve sempre uma rejeição desse tipo de produção. As pinturas de cavalos tiveram um sucesso enorme porque estavam numa grande galeria de Paris e os americanos passavam e compravam. Essa é a série de que se perderam [no sentido de se lhes perder o rasto] mais quadros porque foram comprados por desconhecidos. Mas ele resolveu acabar com a série.
Deve ser uma decisão difícil quando se está a ter sucesso comercial.
Há de facto uma permanente pesquisa sobre processos de representação e reflexão sobre determinados temas. Primeiro a questão do movimento, depois há a passagem para estas composições de formas recortadas sobre fundos lisos. Depois esse período das cores lisas de referência pop dá lugar a uma série de colagens eróticas. E depois passou das colagens eróticas para a série dos tigres, e durante três anos só fez tigres.
Porquê essa obsessão com os tigres?
Os tigres começam com ilustrações para um livro de Jorge Luis Borges. Aliás, é um conto em que andam à procura do tigre e o tigre não aparece. E as colagens que ele fez à volta do tigre continuam numa série. Isso foi uma coisa que sempre aconteceu: ter um estímulo para pegar numa série e continuar até esgotá-la. Os tigres acabam no momento em que ele passa aos temas literários. As encomendas e os convites são sempre muito importantes, porque são eles, muitas vezes, que sugerem novos temas. Em 82 há o convite para os azulejos do Metropolitano de Lisboa, e há um convite do Joaquim Vital, o editor de Paris, da Différence, para um livro sobre um poema do Edgar Poe, e os seus tradutores – Baudelaire, Mallarmé e Pessoa. Isso deu origem a uma série de retratos de escritores. É também nessa altura que faz sete quadros desencadeados pela Mensagem do Fernando Pessoa. E depois aparecem os temas mitológicos, que são interrompidos pelo convite para ir ao Brasil em 87.
E aí nasce outra coisa.
Nasce outra coisa. Toda a primeira fase da obra tem a ver, digamos, com o espetáculo visto – as cenas de trabalho, as tauromaquias, as corridas de cavalos são coisas a que ele assistiu. No caso da pop a situação muda, porque ele nunca viu um um desafio de rugby, no maio de 68 não andou lá metido. Passa a usar muito a fotografia – o rugby começa com uma fotografia num jornal que ele encontra na rua. Depois há um oscilar entre a ligação aos espetáculos vistos e o imaginário da literatura, que aparece logo nas séries do Dom Quixote. Com os índios do Brasil é um regresso ao espetáculo vivo. É convidado para estar presente na rodagem de um filme do Ruy Guerra na Amazónia. Isso interrompeu a produção dos temas literários – e acho que foi benéfico. Tudo isto oscila com os retratos dos amigos, desde o princípio, nos anos 40, alguns feitos na prisão. Há também o retrato famoso do Mário Soares e nos últimos anos de vida os retratos dos amigos, de fadistas, etc.
Ainda não tínhamos falado da passagem pela prisão. Tenho a ideia de que normalmente estas figuras eram mais poupadas.
Claramente. É uma prisão de poucos meses e não há violência física nem tortura propriamente dita. Pode ter sido marcante até em termos de notoriedade social. O Mário Soares conta que o levou a fazer o retrato do Norton de Matos e esse desenho aparecia em todos os comícios.
Disse-me que, embora vivessem paredes-meias, no esquerdo e direito, só lhe batia à porta se havia algum assunto para tratar. Nunca o via a pintar?
Raramente. Se ia lá acima ao ateliê não era para o ir ver pintar, era para tratar de alguma coisa. Não havia uma vinculação familiar muito forte. Nem ele nem nenhum de nós cultivava uma proximidade grande. Raramente lá ia comer a casa.
Embora o seu irmão também seja pintor.
São coisas separadas.
E não acompanhou, por exemplo, a evolução de algumas pinturas?
Nessa época o meu pai vivia em França, praticamente só vinha cá passar férias. Só nos anos 80 é que passou a ter esta casa e só mais tarde, quando começa a ter muita dificuldade em subir os dois andares altos da casa de Paris e começam a morrer os amigos de lá, se instala aqui.
As relações com os galeristas eram sempre pacíficas?
Aqui em Portugal, a partir de 73 e até 2000 e tal, manteve sempre relação com a [galeria] 111, que tinha como regra absorver a produção o mais possível para clientes portugueses, em vez de apostar na internacionalização. Foi tendo várias galerias em França, umas melhores, outras piores, porque a primeira, que era muito boa, a Lacloche, passou a dedicar-se aos objectos de artista e ao mobiliário de artista e, portanto, deixou de fazer exposições de pintura.
E também vendia no próprio ateliê?
Não, as relações com as galerias eram rígidas, ele aliás não tinha jeito nenhum para isso. Nem a carreira comercial, nem a distribuição, nem a estratégia mediática foram habilidades dele, ao contrário de outros artistas. Embora possa não parecer, dado o excesso de entrevistas e uma presença mediática forte, já nos anos 2000 e tal. Antes disso, a relação com a crítica portuguesa não era feliz.
Houve algum choque? Ficou desagradado com alguma coisa que se escreveu sobre ele?
A crítica portuguesa nos anos 50 considerava que a abstracção era um caminho inevitável, toda a arte ia ser abstracta, a figuração tinham morrido, etc. Todos eles defendiam a abstracção e tinham uma posição muito reativa em relação aos artistas que ainda ‘precisavam’ de uma referência figurativa. Depois, a seguir ao maio de 68, também há uma grande contestação da pintura, muitos artistas abandonam a pintura, considerava-se que era um produto para a burguesia. E no princípio dos anos 80 há um regresso à pintura e também o regresso à figuração.
O seu pai sempre teve desconfiança em relação à abstracção, não foi?
Acho que ele experimentou. Ao longo dos anos 60 tentou a abstração ou coisas que tendiam para a abstração, mas isso nunca o satisfez e destruiu para aí 60 quadros ou coisa do género. Aliás, publicámos um livro com as obras destruídas porque ele tinha-as fotografado para os relatórios de bolseiro da Gulbenkian.
Já referiu a cerâmica, a gravura e a ilustração. E escultura, também fez?
Fez escultura desde o início, foi uma coisa a que regressou de vez em quando.
Tenho a ideia de ver uma peça com uma certa ironia, que se chamava ‘É uma pena’ e era mesmo uma pena de pássaro.
Era uma coisa muito irónica jogando com as palavras. O humor é uma marca constante. E o erotismo. Há nus desenhados na prisão que foram expostos em 47 e foram criticados por críticos neo-realistas e defendidos pelo Mário Dionísio. Em 52, a exposição na Galeria de Março também tinha vários nus, lá lhe cai a crítica neo-realista em cima outra vez. E depois tem as fases eróticas dos anos 70. Uma característica que é muito rara é que não são retratos de modelos, são retratos íntimos das várias mulheres com quem viveu.
O facto de nunca ter havido uma grande ligação familiar tem que ver também com a forma como o seu pai encarava o trabalho?
Sim, tem a ver com características pessoais, muito autocentradas. Digamos que ele não é absorvido pelo universo familiar, como é muito frequente em artistas com alguma importância. É tudo muito centrado na sua própria vida, na sua produção, na sua carreira.
O Lucian Freud dizia que tinha de ter tanta paciência para pintar os seus quadros que não lhe sobrava nenhuma para o resto…
[risos] É capaz de ser qualquer coisa parecida. Depois, com os vários divórcios e as várias relações, o contexto familiar também vai mudando.
O Vítor Rainho costuma contar que, nos tempos do Expresso, o Vicente Jorge Silva tinha o hábito de pegar numa espécie de uma moldura de esferovite, punha-a na cabeça e dizia: ‘Pomar, olha aqui uma escultura do Cabrita Reis’.
O Vicente fazia uma paródia grande que expressava a desconfiança do público em geral em relação às nossas escolhas. Tenho ideia que foi mais no tempo em que ele tinha uma namorada que pintava e não percebia porque é que não lhe prestávamos mais atenção.
Não estou a falar do Cabrita Reis, mas na arte contemporânea às vezes vemos coisas um bocado estapafúrdias: um artista que cola uma banana na parede, o outro que faz uma escultura invisível…. E tendemos a perguntar se não é uma fraude pura e simples. Enquanto crítico, como olha para estas manifestações?
Tive muitas vezes uma má relação com algumas propostas artísticas. Acho que há muito de anedótico e de especulativo nesta evolução das artes. E depois cria-se uma tradição da vanguarda que já não é uma tradição de inovação, mas a repetição de gestos de humor ou de provocações, mas que são imediatamente absorvidas pelo mercado e pelos museus e portanto, efetivamente, já não provocam nada. Neste momento, a relação das pessoas com a arte é, em geral, uma relação de grande desconfiança. Antigamente ia-se às galerias, agora as pessoas têm medo de entrar nas galerias, tem de se tocar à campainha…
É um pouco intimidatório…
As pessoas vão aos museus quando eles têm jardins e refeitório, ou restaurante. Passeiam no CCB mas não entram, passeiam na Gulbenkian mas não entram. Há uma descredibilização.
Vê isso como uma consequência da produção artística?
Da produção e de uma certa tradição em que as vanguardas se sucediam umas às outras e apagavam obras de grande qualidade. Sei lá, ninguém ligava ao Bonnard, por exemplo. E a história não é feita só dessa sequência de vanguardas. Este é um terreno confuso e a quantidade de livros com posições muito críticas em relação à arte contemporânea é muito grande. Eu próprio publiquei muitas coisas afirmando uma desconfiança grande em relação à orientação de Serralves, por exemplo. Foi-se criando uma grande desconfiança, os públicos afastaram-se, ou então uma atitude paralela a esta, que é ‘vale tudo, a gente não tem opinião. Enquanto as pessoas vão ao cinema e dizem ‘gostei’ ou ‘não gostei’, nas artes dizem ‘disso não percebo’. E isso é uma consequência desta desorientação – também tem a ver com a perda de eficácia dos museus, só fazem exposições temporárias de afirmação de novos artistas. A Gulbenkian ainda tentava às vezes apresentar uma perspetiva histórica do século XX, mas não há nenhum museu…
Que estabeleça um pouco as bases?
E que estabeleça credibilidades e notoriedades. Depois os colecionadores habituaram-se a comprar jovens artistas porque são muito baratos.
Estão à procura daquele que se vai tornar famoso e valorizar imenso.
O mercado português está muito marcado por alguns vícios.