"O ESTADO NOVO ERA UM PARAÍSO PARA OS PEDÓFILOS"
TEXTO | José Cabrita Saraiva
FOTOGRAFIAS | Mafalda Gomes
Nas últimas semanas houve duas decisões judiciais que levaram muita gente a mudar de opinião relativamente ao caso Casa Pia: o pagamento de uma indemnização a Paulo Pedroso e um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que dá razão a Carlos Cruz. Isto permite supor que foram injustiçados?
Não, há aí um engano.
Este acórdão não dá razão aos que achavam que Carlos Cruz está inocente?
De todo. Por isso é que escrevi um artigo de opinião nesse mesmo dia. Fui a primeira a chamar ‘derrota’ a esse acórdão e o Miguel Sousa Tavares depois também disse o mesmo.
Derrota porquê? O acórdão não lhe deu razão?
Se Portugal jogar com a Alemanha, e a Alemanha marcar três golos e Portugal só marcar um, é uma vitória para Portugal? É exatamente o que se passa aqui. Estes arguidos - estamos a falar do Carlos Cruz, do Jorge Ritto, do Ferreira Dinis, do Manuel Abrantes - queixaram-se de não terem tido um processo justo e equitativo, com base em cinco questões. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos veio dizer que não, antes pelo contrário: tiveram direito a um julgamento justo, em que a prova é abundantíssima, ficaram até perplexos com a quantidade de prova e de testemunhas ouvidas, e, portanto, o tribunal rejeitou todas essas pretensões.
O importante neste acórdão, para já, é o facto de vir de fora. Nós consideramo-nos um pouco um país de terceira divisão, não nos temos em grande conta, e achamos que só é bom o que vem de fora. A investigação da Casa Pia começou há quase duas décadas, houve uma brutal reação quer a nível político, quer a nível da nossa classe jornalística. Acho que Portugal não estava preparado para uma miséria tão grande - e grande parte dos jornalistas e comentadores abandonaram as ferramentas com que lidamos habitualmente, como a objetividade e a isenção, e funcionaram em termos de classe, de amizade, ou por questões ideológicas. Por que é que as pessoas não disseram antes que isto era uma derrota para o Carlos Cruz?
Mas há um ponto em que dá razão a Carlos Cruz...
Há uma parcela de uma questão em que o tribunal europeu lhe dá razão.
Que está relacionada com as contradições das testemunhas, não é?
Não. Tem a ver com isto: após aquela fase de retratação das vítimas, Cruz vem pedir que duas testemunhas fundamentais neste processo - que não se retractaram - fossem obrigadas a depor de novo, porque os seus depoimentos teriam sido postos em causa por uma testemunha que se retratou. Eles diziam: ‘Nós estivemos naquele sítio na Rua das Forças Armadas com ele’, mas essa testemunha mais tarde negou. Portanto, o que eles pediram foi para ouvir essas duas testemunhas que já tinham sido ouvidas - aliás, foram dos testemunhos mais exaustivos, cada uma delas levou cerca de dois meses a ser ouvida em tribunal - e os arguidos tiveram hipótese de as confrontar com todas as questões. E mesmo nesse ponto a votação foi 4-3. E é importante lembrar que a presidente do coletivo a determinada altura diz que ficaram chocados com o argumento do requerente que considera o abuso de menores na Casa Pia «o resultado da fantasia - consciente ou inconsciente dos alunos ou ex-alunos». E também se referem aos outros juízes como pessoas que desconhecem de todo a psicologia que está por detrás dos abusos sexuais.
Conheceu esses dois rapazes que a defesa queria voltar a ouvir?
Já não falo com eles há uns tempos, mas conheci muito bem. E tanto quanto sei, o seu testemunho hoje não seria diferente.
E a outra testemunha que depois negou?
Também. Ele negou, mas depois a nós veio confirmar.