Porque é que os ilusionistas se vestem sempre de preto?
Não é verdade. Mas há uma tradição: quando a magia saiu e os mágicos passaram a ser convidados para trabalhar nas corte e para atuar em teatros, as pessoas que iam ao teatro iam de casaca e cartola. Ora a primeira coisa que os mágicos deveriam fazer era pelo menos estar à altura dessas pessoas em termos do aspeto, e a casaca e cartola pretas eram a forma de mais bem vestir daquela época. Depois as pessoas passaram a vestir de outra maneira e os mágicos foram continuando. Mas não é verdade que vistam todos de preto.
E no seu caso?
É por absoluta falta de imaginação.
Mas não foi um bocadinho contaminado pela profissão?
Não, de todo. Passei a ser assim a partir dos 15 anos e por uma razão muito simples. Dou imenso valor à estética, mas em termos cromáticos era um bocadinho um desastre. Mas uma vez comprei uma camisola de gola alta preta, numa loja da baixa de Coimbra que se chamava Fetal, e fui a uma festa de anos. Percebi que com uma camisola de gola alta preta não importa qual é a cor do casaco ou das calças e aquilo aparentemente ficava-me bem, porque houve muitos comentários elogiosos (risos). Então voltei à Fetal no dia seguinte e comprei mais cinco. Tinha 15 anos, foi quando fui estudar para Coimbra. E a dada altura contaminou-se para os casacos e para as calças. Enfim, ponho uma coisinha mais jeitosa quando estou em cima do palco mas basicamente não distingo o que visto em cima do palco ou fora dele, sou a mesma pessoa também no aspeto.
Vamos então saltar para o início, para Moçambique. Nasceu em que zona?
Nasci em Lourenço Marques, a 23 de agosto de 1970. Os meus pais tinham ido para lá - o meu pai é de Chão do Couce, que é concelho de Ansião, a minha mãe é da Cumieira, que pertence a Penela. Viemos para Portugal em 74, não sei precisar o dia mas sei que vim fazer os quatro anos cá.
Tem alguma memória de Moçambique?
Tenho, aquelas que confundo como sendo minhas ou aquelas que me foram dadas pelas histórias que me contavam e pelos filmes que o meu pai fazia. Ele filmava o menino por tudo quanto era lado em Super 8. Recordo-me muito de Moçambique mas admito que essas memórias sejam fruto das histórias, dos filmes e das minhas próprias visitas.
E se lhe pedir para se abstrair dessas histórias que lhe foram contadas ou mostradas, o que fica?
A igreja da Polana, que identifico como a primeira pelo simbólico que ela encerra. Uma das coisas que acho que hoje Maputo identifica é esse conjunto de pessoas que, sendo incómodas na metrópole, lá poderiam dar asas à sua imaginação e visão. Dou como exemplo a igreja da Polana mas também outras coisas na cidade. Não há hoje ainda em Lisboa uma rotunda tão grande como a mais pequena de Maputo. Isto revela um estado de espírito e ambição. Em Portugal, nem daqui a 50 anos existiria a coragem de desenhar e construir uma igreja tão vanguardista como a da Polana. Se hoje fosse construída em Portugal, seria alvo de críticas como sendo uma coisa completamente desajustada, mas não, é simplesmente um símbolo de um espírito vanguardista inacreditável. Não é à toa que o próprio Eiffel fez lá uma casa toda em ferro.
Quando voltaram sentiram aquilo que algumas famílias descrevem como um estigma, o de serem retornados?
Era muito novo, mas ouvi os meus pais a falar sobre isso. A palavra retornado faz parte da minha infância. Não sei se era pejorativo, mas não era positivo porque a situação não era agradável. Estamos a falar de uma família completamente estabelecida num país a quem de um momento para o outro é retirado tudo e tem que começar do zero - e isto, por definição, não é a mais agradável das situações.
Como foi crescer num sítio mais rural?
Recordo-me de ter vários professores da primeira classe, porque a minha mãe foi professora em vários locais até finalmente efetivar. Tive uma infância acho que normal e saudável, de ir a pé para a escola e apanhar frio e calor, ter liberdade própria. Havia imensa confraternização e aprendiam-se social skills em tenra idade. Foi depois nessa altura, com nove anos, que entrei para um grupo de teatro e variedades.
E esse momento foi o gatilho daquilo que viria a ser a sua carreira?
Foi porque havia no grupo um mágico, o Serafim Afonso. Todos tocávamos, dançávamos e essas coisas, mas ele também fazia magia. Com ele aprendi alguns truques e ainda enquanto hobby na minha vida a magia foi alimentada por esse relacionamento de proximidade com o Serafim.
E o hobby foi alimentado pela sua família?
Não. Para um filho único de pais professores qualquer coisa que não seja estudar é preocupante. Portanto, uma coisa que percebi rapidamente é que não podia fazer perigar em nada os meus resultados académicos, mas se os mantivesse entretidos com bons resultados, podia estar na boa com o resto do tempo disponível. E essa moeda de troca inevitavelmente levou a que acabasse por ser bom aluno.
Depois com 15 anos foi estudar para Coimbra. Porquê tão novo?
Estudava no Avelar, no concelho de Ansião, onde só havia até ao 9.º ano. Ir estudar para Coimbra foi um passo brutalmente decisivo na minha vida porque passei de uma superproteção de filho único para uma total liberdade. Fui para Coimbra viver com outros três rapazes, irmãos entre si. Os pais deles também eram professores e eram amigos dos meus pais, tinham um apartamento em Coimbra e tiveram a imensa generosidade e amizade de proporcionar que eu pudesse ir desta maneira.
Foi quase como ir para a universidade três anos antes.
Exatamente. E isso com 15 anos ou pode correr muito mal ou pode ser uma coisa extraordinária, que foi o que me aconteceu. Passei da condição de miúdo para menos miúdo dos 15 aos 18 em interação com Coimbra, apaixonei-me por aquela cidade e cresci com ela. E isto acabaria por condicionar o resto das decisões da minha vida, ao ponto de ainda hoje viver em Coimbra, enquanto o normal numa carreira de showbusiness é vir para Lisboa.
E isso nunca lhe passou pela cabeça?
Nunca. Venho a Lisboa, se for preciso todos os dias durante um mês, mas Coimbra é o meu poiso, o meu quartel-general.
A propósito... Como surgiu convite para ser coordenador da candidatura de ‘Coimbra Capital Europeia da Cultura 2017’ e como vê o seu papel?
Com humildade mas com uma enorme satisfação e entusiasmo. Sempre que a possibilidade de que o meu empenho possa fazer a diferença é colocada em cima da mesa, empenho-me o mais possível. Estamos habituados a que este tipo de cargos seja entregue a outro tipo de pessoas. Depois, o processo das capitais europeias da cultura é espoletado pelas autarquias. Ainda não abriu o concurso mas a Comissão Europeia já anunciou que uma das duas - ou três - capitais da cultura a acontecer durante esse ano será em Portugal, e a outra na Letónia. Pedi para escolher a minha equipa, que conta com um grupo de pessoas com provas dadas e que me parece o melhor do mundo para coordenar esta candidatura. Fui a terceira escolha para este papel - o que não tem mal nenhum, só me faz mais vontade de fazer bem -, e na minha equipa estão as primeiras duas pessoas que recusaram o cargo, mas que aceitaram trabalhar comigo, o que me fez sentir muito sensibilizado.
Que tipo de trabalho já desenvolveram?
Temos ouvido os agentes culturais, já conseguimos como parceiros a Universidade de Coimbra, o Instituto Politécnico de Coimbra, a Fundação Bissaya-Barreto, o Turismo Centro de Portugal. Já contactámos, entre outros, a delegação do Ministério da Cultura. Todos os municípios da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM) apoiam a candidatura Coimbra 2027. Há toda uma vontade que percebe que chegou o tempo de Coimbra. Não nos podemos esquecer de que Coimbra foi a primeira capital de Portugal e uma cidade que ajudou a formatar o país, a Europa e o mundo. É a cidade portuguesa por onde passa anualmente, há 700 anos, o maior número de estudantes estrangeiros, que aqui crescem e levam para o mundo o que aprenderam em Coimbra. Conseguimos construir um conselho consultivo com nomes extraordinários que amam Coimbra e que já começaram a dar ideias: Eduardo Lourenço, António Feijó, Edson Athayde, Rui Vieira Nery, Ricardo Pais... Coimbra tem 144 agentes culturais com quem mantém relação direta e estamos a fazer reuniões com todos - é importante que esta seja uma candidatura que nasça da ambição e não da contingência. Para isso temos que ouvir os agentes culturais e, acima de tudo, ouvir a população. Todos nós temos uma sensação de Coimbra que é diferente da ideia que Portugal tem de Coimbra. Coimbra de alguma forma foi perdendo o protagonismo mas não perdeu a importância, e chegou o tempo de Coimbra ser capital da cultura em 2027, não como prémio mas como inspiração e exemplo.
Voltando à adolescência: não fez nenhum disparate quando foi morar sozinho com 15 anos?
Claro, imensos.