Bolha claustrofóbica da existência

Hoje de manhã, enquanto fingia que corria ao longo da marginal de Lisboa, cruzei-me com uma senhora que vendia especiarias de todos os cantos do mundo onde nunca esteve…

por Catarina Teles de Menezes

Hoje de manhã, enquanto fingia que corria ao longo da marginal de Lisboa, cruzei-me com uma senhora – do tempo dos Descobrimentos – que vendia especiarias de todos os cantos do mundo onde nunca esteve.

Atrás da sua banquinha ambulante, vestida de um branco gasto enferrujado pela chuva, escondia-se uma menina do frio que fazia. Claramente curiosa, espreitava subtilmente para ver quem passava, inocentemente esperando que quem passasse não a visse. Supus que fosse a filha. A senhora puxava-a. («Vá. Fica quietinha. Vá.»)

Tinha a cara inscrita de histórias, dores brotando dos olhos, voz rouca de choros de outrora, mãos laboriosas e rugas centenárias. Aproximei-me e, sorrindo para a filha, disse que levaria um bocadinho de cada tempero. Havia um pouco de açafrão na sua blusa e, de tão intenso o cheiro, um pouco de caril no meu nariz.

Enquanto a via recolher os ditos-cujos, atentei o céu finito que partilhamos. As nuvens estavam cansadas. Ainda que cinzentas, permaneciam sofridamente contidas como se já tivessem esgotado as lágrimas. Pairava um nevoeiro tremendo, daqueles que nos fazem questionar se o regresso de D. Sebastião é efetivamente um mito (e se esse mito é mesmo um nada que é tudo, porque falta tanto…).

A filha tapava a boca com o colarinho de uma camisola que trazia por baixo de um casaco que usava como manta. Era, eventualmente, da mãe que vendia o açafrão e o caril de casaquinho de malha com um frio de cortar à faca, mas a única coisa que para si a faca cortava incessantemente eram os pés-de-salsa que vendia.

As mãos da filha, pequeninas e branquinhas, surgiam de dentro das mangas rotas, agarrando aquele fascinante brinquedo que deita bolinhas de sabão. Esperançosa, mirava-as ascendendo à boleia do seu sopro (comparando-as a fim de encontrar uma maior onde, por desconhecida sorte ou azar, coubesse), tentando quiçá agarrar alguma que a levasse para longe, mas todas maldosamente se desfaziam sempre que os seus dedos as tocavam.

A mãe entregou-me uma dezena de frasquinhos, guardou o troco que dispensei e, sem abrir a boca, fitou a filha em gesto de agradecimento. Os seus olhos cruzariam os meus pelo reflexo dos da pequena que (sem saber) fez exatamente aquilo que eu gostaria de ter feito. Agitou o brinquedo, separou-lhe as peças e soprou umas quantas bolhas que se eternizaram pelo caminho que eu prosseguia, seguindo em direção a casa.

À chegada, pousei o tempo enfrascado na banca e, perdida entre especiarias com que cozinhava memórias, percebi que a vida era exatamente aquilo. Sufocam-nos hoje as bolhas que ingenuamente soprámos um dia – na esperança de as vermos voar.

Lisboa, Setembro de 2021