Cambodja. A sombra negra dos khmers vermelhos

Foi há 40 anos que caiu o regime de Pol Pot. A sua violência foi de tal ordem que devastou cerca de 25% da população do Cambodja. Era profundamente autocrático, xenófobo, paranóico e repressivo. 

A pergunta é feita num tom de súplica pela menina de olhos grandes e negros que nos estende uma lata de Coca-Cola à entrada de Angkor Wat: «Sivu-plé msiôr, vlez boár quel-cu chow?»

Por toda a Indochina é assim: o francês que só se entende em sons concatenados, moldado ao monossilabismo das frases. 

Angkor quer dizer a cidade ou a capital. Em khmer pronuncia-se Angkoh, num vício antigo desta língua estranha que condena as consoantes que terminam as palavras a um silêncio quase tão profundo como o da floresta que abraça a misteriosa cidade de pedra, fantasmagórica e fascinante. Angkor, o mundo perdido das apsaras, «aquelas que atravessam as águas das nuvens», mulheres desenhadas em baixos relevos a toda a extensão dos templos arruinados, testemunhas mudas das grandezas de um antigo império que se prolongou por mais de seiscentos anos.

Angkar quer dizer a organização. Dois nomes tão idênticos e, no entanto, se o primeiro rescende à perfeição escondida de um mundo velho, envolto em árvores gigantescas e aprisionado nas teias asfixiantes das raízes assassinas das árvores-da-seda, o som do segundo deixa de novo entreabertas as janelas escuras do medo.

Mas voltemos um pouco atrás, as histórias contam-se com o desembrulhar das palavras. Regressemos ao interior do voo VN-813, feito no interior de um pequeno ART-72 de fabrico francês, das linhas aéreas do Vietname, proveniente de Ho Chi Minh City e da sua caótica confusão de ruas em labirinto e prédios apodrecidos à mistura com edifícios modernos, e ao momento em que a aeronave já desce sobre a planície de Kandal por entre o som ritmado das hélices nas suas rotações descontínuas. Pelo ovo da janela estende-se o lençol de água castanha do Meckong e do Bassac que se aproximam e em seguida se misturam em terrenos alagados e imensos arrozais. Os edifícios da Universidade e do Instituto de Tecnologia que se encontram sobre o Russian Boulevard parecem estar ao estender da mão. Mas, depois de termos pousado suavemente na pista de Pochentong, entramos no ritmo normal de uma vida sob os trópicos – só que existem, ainda hoje, marcas de medo. E há uma memória incómoda de tempos sobrepostos de guerras estúpidas, inúteis como todas as guerras.

No dia 17 de abril de 1975, Portugal preparava-se para comemorar um ano sobre o advento da liberdade e Saigão esgotava a sua resistência perante o avanço dos Viet-Cong. Nesse dia, a despeito de todo o apoio dado pelos americanos e pelos sul-vietnamitas, o regime de Lon Nol caiu às mãos do movimento revolucionário criado por Sihanouk e comandado agora no terreno por um chino-khmer de educação católica francesa, que cursara rádio-mecânica em Paris. O seu nome era Saloth Sar. Mas, durante os seus tempos de professor do liceu em Phnom Penh, adotaria uma nomenclatura mais revolucionária: Pol Pot (POLitique POTential). A seu lado tinha dois amigos de juventude e camaradas nas ideias radicais – Khieu Samphang e Leng Sary. O seu sonho era o de uma época «ainda mais prodigiosa de que a de Angkor Wat». O vermelho e o negro, como diria Stendhal: os khmers rouges e os sanguinários a-khmau, os homens das faixas negras em redor da testa. 

Duas semanas depois, Phom Penh estava deserta. Apenas os funcionários do Estado estavam autorizados a lá viver. A pessoalíssima visão de Pol Pot sobre as grandezas de Angkor baseava-se no crescimento de maciças quantidades de arroz. As cidades eram inúteis, havia que esvaziá-las; o negócio era maligno, acabava-se com os mercados e abolia-se o dinheiro; destruíam-se todos os vestígios de influência estrangeira: televisões, aparelhos de ar condicionado, eletrodomésticos; liquidavam-se as pessoas contaminadas: adversários políticos, médicos, professores, intelectuais. Excetuando um voo quinzenal ligando Phnom Pehn e Pequim, a única capital que apoiava este novo Governo maoísta-cooperativista-agrário-camponês, o país ficou absolutamente isolado de qualquer contacto exterior. Era o início daquilo que os cambodjanos aprenderam a chamar «peal chur chat», os tempos da tristeza e da amargura.

Nay Vannara é uma senhora de quarenta e poucos anos. Tem a cara larga dos khmers, as maçãs do rosto bem pronunciadas e o queixo quadrado que nos habituámos a ver nas estátuas de Angkor. Em 1975, era uma rapariga com uma vida inesgotável pela frente e os sonhos próprios de quem acaba de saltar alegremente a barreira dos vinte anos. Estudara no Colégio Francês de Phnom Penh, tinha uma filha pequena, ambicionava tornar-se professora. Em abril, tudo mudou. Como se a existência humana também pudesse ser sujeita a intervalos.

Um terror infinito

Estamos sentados no Miramar, no Monivong Boulevard, em pleno centro de Phnom Penh. Gostaríamos de saber porque é que o restaurante se chama assim, o mar ainda fica longe, lá mais para sudoeste, para Kompong Som, antiga Sihanoukville, mas ninguém parece capaz de nos satisfazer a curiosidade sobre este nome tão corretamente latino. O dono é chinês, comprou-o, já com o nome, de outro chinês. «Talvez tivesse vindo de Macau», sugere. Talvez… 

Nay Vannara fala dos dias de terror como se entrasse no alívio consolador de uma confissão. Fala muito. Conta tudo. Fala do dia em que a arrancaram de casa, e dos milhares de pessoas em filas intermináveis que eram forçadas a marchar para os campos de trabalho; fala de como as famílias eram divididas e de como homens e mulheres eram obrigados a viver separados; fala de como as crianças com mais de dois anos eram tiradas às mães e entregues à Angkar, a organização, para que aprendessem a ser apenas filhas do país, capazes de matar os próprios pais se preciso fosse; fala de como, mês a mês, as pessoas eram transferidas de uns campos de trabalho para outros para que não pudessem criar raízes ou amizades; fala de como era obrigada a trabalhar nos arrozais durante dezoito horas por dia, alimentada somente por uma malga de arroz cozido; fala dos capatazes de faixa negra sobre a testa que tinham o poder discricionário da vida e da morte; fala de como teve de esconder que sabia ler e escrever para evitar ser executada sob a gravíssima acusação de… intelectualidade.

À noite, Phnom Pehn é tranquila, não tem o movimento des cidades cosmopolitas. Nos olhos de Nay Vannara leem-se à transparência os efeitos devastadores das barbaridades que viveu. Reencontrou o marido, que é militar e está destacado na zona quente de O’Rat Kros, mas nunca mais ouviu falar dos pais nem dos irmãos. Em sua casa vivem doze pessoas, entre sobrinhos orfãos e primos com pais desaparecidos. «Nós éramos mais do que escravos», diz. «Éramos usados como simples maquinaria. E não estávamos autorizados a ter nada, nem um simples prato. Todas as noites, dois ou três de nós eram arrancados da enxerga que nos servia de cama e mortos indiscriminadamente à custa de pancadas na nuca dadas com uma barra de ferro». 

Dez regras macabras

As regras eram simples, e ainda estão afixadas numa das paredes de Tuol Sleng, a antiga universidade de Tuol Svay Prey que as forças de segurança de Pol Pot tranformaram na sinistra Prisão de Segurança-21, conhecida pela designação de S-21, hoje um museu que preserva a memória das atrocidades dos khmers vermelhos. Estão traduzidas para inglês, para que toda a gente possa entender uma forma de pensar e de agir que faz tábua rasa de todos os princípios básicos da humanidade. Resumem-se a dez alíneas:

 1. Deve responder às minhas perguntas sem rodeios.

 2. Não tente esconder factos nem apresente pretextos. Está estritamente proibido de me contestar.

 3. Não cometa a loucura de querer ser um homem que contrariou a revolução.

 4. Deve responder às minhas perguntas de imediato sem perder tempo a reflectir.

 5. Não me fale das suas imoralidades.

 6. Enquanto receber choques eléctricos não deve gritar.

 7. Não se mexa. Espere pelas minhas ordens. Se não houver ordens, mantenha-se quieto. Quando lhe mandar fazer alguma coisa, deve fazê-lo imediatamente sem protestar.

 8. Não utilize pretextos tirados dos costumes cambodjanos para esconder as suas tendências para a traição.

 9. Se não obedecer às ordens acima, sofrerá choques elétricos.

 10. Se desobedecer a algum ponto dos meus regulamentos, sofrerá dez choques eléctricos e será electrocutado.

Sadicamente, todos os passos da barbárie foram sendo meticulosamente arquivados. As pessoas eram geralmente fotografadas antes e depois das sessões de tortura, e os corredores de Tuol Sleng estão repletos de fotografias, do chão ao tecto, de homens mulheres e crianças que foram torturadas e mortas massivamente, num estado de demência assassina que tornava os carrascos de hoje nas vítimas de amanhã e assim sucessivamente num carrossel interminável de auto-genocídio que durou quase cinco longos anos. A S-21 orgulhava-se de exterminar 100 pessoas por dia. E quantas pessoas morreram? Dois, três milhões? Seguramente mais de 25% da população. Só que há sempre um silêncio de culpas sobre os números do horror…

Renascimento

Mas o Cambodja é um país imarcescível, isto é, vai renascendo no fim de cada morte, e Phnom Penh um símbolo de reconstrução e ressurgimento. Em janeiro de 1979, as tropas vietnamitas tinham arrasado a capital e posto o território a ferro e fogo. Pol Pot embrenhou-se na selva com os seus acólitos. Hun Sen e Heng Samrin, figuras destacadas dos khmers vermelhos que haviam fugido para Hanói cerca de dois anos antes, são colocados no poder. Um jornalista do Neues Deutschland, de Berlim-Leste, descreve assim Phnom Penh em março desse ano: «O vento assobia pelas esquinas de uma cidade-fantasma como se estivéssemos num cenário sombrio de uma Hollywood decandente; há cadáveres espalhados pelas ruas; os helicópteros cruzam o céu espalhando nuvens de desinfetante». Um ambiente macabro e mórbido. Em maio de 1982, já Sihanouk fizera germinar nova corrente revolucionária, agora anti-vietnamita, chamada FUNCINPEC (Frente Nacional Cambodjana para um Independente, Neutral, Pacífico e Cooperativo Cambodja), a National Geographic Magazine devolve ao Mundo as riquezas esquecidas dos khmer. Uma equipa de luxo, formada pelo editor Wilbur Garrett, pelo redator-senior Peter T. White e pelo fotógrafo David Alan Harvey viajou exaustivamente pelo então Kampuchea e observou o desabrochar de um sociedade titubeantemente à procura de si própria. «Desde cedo que o trânsito se põe em marcha ao ritmo lento das bicicletas. Muitas delas – chamadas kong dup, bicicletas-duplas ou velo-táxis – têm o espaço da carga ocupado por um cliente. As motorizadas levam vários passageiros à vez», escrevia Peter T. White. E prosseguia: «Não posso dizer que a cidade parece próspera. Há ainda um indisfarçável aspeto de decrepitude e negligência: ruas esburacadas, edifícios por reparar, um cheiro fétido e estranho. Vi, pelo chão, muitos ratos esmagados pelos automóveis. Mas, o que me impressiona mais é a decisão de recomeçar uma nova vida».

Phnom Penh é, hoje, uma cidade pacífica sem vestígios das guerras que foi obrigada a suportar. Por todo o lado há o fascínio da cor – o algodão ou a seda dos sarongs querem-se em tons berrantes, porque nos anos de Pol Pot todos se vestiam de escuro. 

Imagens soltas

Em redor do Mercado Central, uma curiosa construção francesa estilo art-deco, os táxis coletivos esperam pacientemente pelos que vieram negociar durante o dia e regressam ao fim da tarde às aldeias dos arredores. Lá dentro, tudo se vende. Desde fatias de carne seca a peças de vestuário; desde ferramentas a ouro e jóias; desde lápis e cadernos ao peixe e ao marisco que os mercadores mantêm vivo em bandejas de metal meio cheias de água. A estação de caminho-de-ferro fervilha de vida, as camionetas descarregam sacos de serapilheira em frente à sua fachada a precisar de pintura e tornam o largo onde se ergue um incomodativo stupa azul numa confusa amálgama de gente que chega e parte amontoada em carruagens decrépitas de comboios a precisarem de reforma. Ao longo do Mohakssar Trelyani Boulevard, uma avenida larga e bem tratada, cheia de frangipanis em flor, podem ver-se rapazes varrendo os passeios com esmero e homens aparando a relva dos canteiros. De repente chove enquanto caminhamos em direção ao rio, aos picos de filigrana dourada do Palácio Real e do Pagode de Prata, ao luxo asiático do Hotel Rosewood, uma torre de vidro onde uma suíte pode custar trezentos dólares por noite, e ao navio que tem um pavilhão de Singapura, estacionado na margem do canal de Tonlé Sap a servir de casino flutuante. Minudências capitalistas de um país onde o ordenado mínimo não ultrapassa um dólar por dia. Chove diluvianamente no centro de um calor bruto, abafado, que ultrapassa, por vezes, os quarenta graus. É de repente que chove e é de repente que o sol regressa ao centro de um céu de brilho azul.

Em frente ao bloco ocre do museu, ignorando alegremente a solenidade de um espaço onde têm lugar as cremações reais, os meninos jogam à bola no quadrado largo de relva alta. Nas suas caves estão guardados canhões portugueses enferrujados, lembranças de uma passagem efémera que deixou o nome Camboxa da adulteração de Kambu-ja, os filhos de Kambu, figura da mitologia hindu. Mais adiante, paralelamente à corrente castanha do canal que vai pegar numa das curvas do Meckong, as mulheres fritam pedaços de carne em conchas de metal equilibradas num tripé e suspensas sobre fogueiras acesas no lajedo, os monges esperam por um autocarro apinhado, sisudamente metidos nas suas vestes cor de laranja e um ou outro turista ocasional deixa-se estar confortavelmente sentado numa das esplanadas da Avenida Sisowath em frente ao copo largo de espessa cerveja Angkor Stout, radicalmente negra.

‘Killing Fields’

Phnom Penh. Pronuncia-se fenon peinhe. Significa, a colina de Penh, a mulher que, na lenda, descobriu as quatro estátuas do buda engolidas pelas águas do Meckong. Os bairros estendem-se ao comprimento da planície e a cidade ganha um encanto novo no cintilar das gotas das chuva que não tardarão a secar nos telhados das velhas casas coloniais e a serem absorvidas pela madeira imperfeita das construções lacustres dos refugiados vietnamitas, obrigados a instalarem-se no rio por falta de licenças de habitação.

A ponte de Chruoy Changvar, ou da Amizade Japonesa, prolonga-se pela Estrada n.º5 que segue para Norte, para Udong, Kompong Cham, Kompong Thom, Siem Reap, Pursat, Battambang e Bangkok e tem, de um lado e do outro, restaurantes que oferecem espetáculos de folclore e quiosques que vendem galinhas às dúzias e as baguettes anãs herdadas dos franceses expostas em tabuleiros periclitantes. Atravessá-la traz-me à memória as cadeiras antigas do velho Tivoli, e o despero de Sidney Schamberg, correspondente do New York Times na pele de Sam Waterston no filme de Roland Joffé. Terra Sangrenta, chamámos-lhe nós, em português. Em Choeung Ek, para sudoeste da cidade, restam visíveis mais de 8000 crânios empilhados como marca indelével das atrocidades que sobrevieram a 1975. Os Campos da Morte.

Foi sobre a recurva placa de betão de Chruoy Changvar que Sam Waterston, John Malkovitch e Haing S. Ngor transmitiram ao ocidente a angústia da queda de Phnom Penh em imagens fantasiadas de cinema. Mas havia uma realidade ainda mais inacreditável por cima dessa fantasia. «Viram o filme Killing Fields?», pergunta Nay Varanna vindo ao encontro daquilo que penso. Claro!, não fosse esse um dos motivos de estudo incontornáveis para quem se interessa pelo Cambodja. «Já tanta gente me falou da cena em que Dith Pran apanha disfarçadamente uma osga, a mata com um piparote na cabeça, e a guarda no bolso para comer mais tarde. Vocês não calculam o que significava para nós, alimentados com uma malga de arroz por dia durante meses e meses, podermos mastigar qualquer coisa que tivesse sangue ou carne. Mesmo correndo o risco de podermos ser executados se fôssemos apanhados com uma simples peça de fruta na mão». Falo-lhe de Haing S. Ngor, o cambodjano que representou Dith Pran na tela, e da sua morte violenta numa rua de Los Angeles. E Nay Varanna replica em voz baixa: «Haing Ngor era Dith Pran. Foi esse o nome que ele adotou quando foi viver para os Estados Unidos, levado pelo jornalista americano. E foi a Angkar que o matou! Há ainda tanta gente da Angkar com sede de vinganças».

É o medo que, subitamente, está de regresso por entre o resplandecer sossegado da manhã. A sombra negra dos khmers vermelhos. Custa a acreditar, o dia corre tranquilo, quente e sem pressas, nada parece capaz de destruir o seu equilíbrio. Mas há tanta coisa nas quais custa acreditar no Cambodja. As famílias inteiras sentadas nas motoretas incansáveis, cinco, seis pessoas de uma vez; o velho que passa com um porco debaixo do braço; o camponês que pedala a custo numa bicicleta onde viaja, assustado, um burro de patas amarradas; a imaculada limpeza dos boulevards; o tráfico educado que contrasta com a cegarrega insuportável das cidades do vizinho Vietname, da Índia, da Birmânia ou da Tailândia; a imensa dignidade de um povo sofrido, disposto a esquecer as revoltas, os ressentimentos e os remorsos. 

Sobreviver e saber viver

«Muitas vezes cruzo-me na rua com gente que sei ter pertencido aos khmers vermelhos. Mas não podemos alimentar os ódios. Soubemos sobreviver, agora temos que saber viver. E esquecer. Senão as mortes nunca teriam fim».

Os camiões tomam o caminho do Norte e vão juncando a Estrada n.º5. Por ela pode-se chegar a Siem Reap e a Angkor. Mas o trajeto é duro e longo, ninguém o aconselha, é preferível trocar quinze ou dezasseis horas de alcatrão em mau estado por quarenta e cinco minutos de um voo simpático sobre a superfície barrenta do lago de Tonlé Sap, inesgotável fornecedor de peixe (nos meses de janeiro e fevereiro a pesca é tão abundante que 100 quilos podem custar pouco mais de cinco dólares), de marisco e de rãs que se comem inteiras, temperadas com chili e gengibre, por todos os restaurantes do país. Curiosamente, é em Siem Reap e na sua ambiência sonolenta de aldeia à beira rio, onde as crianças tomam banho com o gado, com as as suas ruas de macadame humedecido, que se tornam mais visíveis as cicatrizes da guerra. Por toda a parte se encontram estropiados, vítimas das minas, sem pernas, sem braços, sem mãos, surgindo como fantasmas da sombra cerrada das figueiras-da-Índia e das árvores-da-borracha, entrecortadas aqui e além pelo recorte geométrico dos arrozais verde-esmeralda, que envolvem a cidade perdida de Angkor à maneira das inimitáveis discrições de Kipling. Estendem o braço ou a mão que lhes resta à caridade dos turistas que mergulham nos jardins de pedra de Angkor Thom, Ta Prohm ou Preah Khan, tocam flautas de cana em lamentos angustiados que fazem eco no silêncio dos corredores de Angkor Wat, competem pelos riais ou pelas notas de um dólar com os meninos de olhos grandes que vendem ao desbarato garrafas de água e latas de Coca-Cola e postais descoloridos pelo tempo. Uns não têm passado, os outros não têm futuro. «Possam todos eles encontrar apenas coisas boas nos seus dias e ultrapassar para sempre as suas inimizades». Que é uma forma de se dizer adeus em khmer.