Confissões de um assediador que não estudou Sociologia

Basta ler um primeiro parágrafo de qualquer um dos textos do professor Boaventura Sousa Santos que, sob a proteção do seu escudo da fé, lá se vai o desejo, o gosto pela vida, enfim, tudo…

por João Cerqueira

Confesso que desde os dezasseis anos até uma idade que não posso indicar sem consultar a minha advogada assediei cidadãs do sexo feminino de diversas idades, proveniências geográficas, diferentes níveis culturais, crentes e ateias, umas bonitas outras nem tanto. Pior ainda, tentei, e consegui, embebedar algumas para atingir tais torpes intentos. A única coisa que abona a meu favor é que uma vez, nas catacumbas de uma discoteca manhosa, entre luzes psicadélicas e elevados decibéis, doses de whisky e visão a dobrar, assediei uma moça com excesso de peso que se sentia discriminada.

Defino assédio segundo a versão atual, politicamente correta. Ou seja, dizer a uma rapariga que é bonita e elegante, convidá-la para sair ou jantar fora, mas, também, colocar uma mão num joelho ou nos cabelos e, por vezes, arriscar um beijo.

Provavelmente, deixei traumatizadas algumas dezenas de raparigas que ainda hoje devem sofrer de stress pós-traumático e precisar de ansiolíticos e terapia. No entanto, não me sinto totalmente culpado. Tal como os assediadores dos anos quarenta foram moldados por uma cultura patriarcal que via as mulheres como troféus de caça, eu fui moldado pela cultura do final do século XX que me fez crer que seduzir mulheres e estabelecer relações com elas era uma coisa boa e natural. Como não estudei Sociologia, nem sei lançar os búzios, não sabia que isso era mau. E a ingenuidade, suponho, deve ser perdoada.

Por exemplo, nos filmes do 007 o agente ao serviço de Sua Majestade estava sempre rodeado de beldades de etnias variadas que, mesmo depois de o tentarem matar, acabavam irresistivelmente por se deixar seduzir, com a inevitável mão na perna, beijo, e o resto que não se via. Fora das telas, as estrelas do cinema, assim como os craques da bola e alguns cromos famosos, trocavam de namorada todas as semanas – e elas pareciam estranhamente felizes. E, para piorar tudo, durante a faculdade alguma companhia maléfica recomendou-me a leitura das obras de Henry Miller. Estava concluída a receita para o desastre – para as mulheres, claro. Anos antes da invenção da internet e dos sites porno, já havia um meio sociológico moralmente corrupto para fazer de cada jovem um potencial assediador de mulheres.

Nessa altura, as pessoas não sabiam que não há diferenças entre as mulheres e os homens e que o sexo é uma construção social feita por empreiteiros patriarcais. Ignoravam que deveriam ter vergonha do comportamento machista dos seus avôs e riscar o resto da árvore genealógica masculina. Desconheciam que o bigode das avós era uma forma de rejeição do género binário. Nessa altura, as mulheres casavam com homens, tinham filhos e ninguém se escandalizava. Nessa altura, havia concursos de beleza feminina onde se pontuavam as pernas e a beleza das misses. As pessoas não imaginavam que ver a Playboy era muito pior do que ler o Mein Kampf. Aceitavam que a Branca de Neve pudesse ser beijada sem consentimento pelo príncipe e que entre os sete anões não houvesse homossexualidade. Nunca se questionaram por que motivo o Mickey, o Pateta e o pato Donald não queriam mudar de sexo. Nessa altura, não ocorreu a ninguém que o Tintim e o capitão Haddock deveriam ter vivido em união de facto e ter adotado um refugiado sírio.

Em suma, nessa altura ninguém sabia quem era o professor Boaventura Sousa Santos.

Felizmente, a idade das trevas foi superada, evoluímos, e o mundo está muito mais seguro para as mulheres – desde que não estudem Sociologia. Eu, por exemplo, já não assedio nenhuma há algum tempo. É verdade que, volta e meia, quando vejo alguma mulher com elevados padrões éticos, moderna e sofisticada – isto no século passado queria dizer boa como o milho – sou assaltado pelos velhos instintos patriarcais e fascistas, passam-me pela cabeça as cenas tórridas dos livros de Henry Miller e quase não resisto a usar as velhas táticas de sedução.

E é então que me socorro da versão do século XXI da Carta de São Paulo aos Efésios onde é mencionado «o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do Maligno». Ou seja, as cartas do professor Boaventura Sousa Santos aos crentes que querem salvar o mundo e as mulheres. Basta ler um primeiro parágrafo de qualquer um dos seus textos e, sob a proteção do seu escudo da fé, lá se vai o desejo, o gosto pela vida, enfim, tudo. Mas o mundo melhora, os dardos malignos do Heteropatriarcado encolhem e as mulheres desabrocham em felicidade.