Extradição de arguido do Lava Jato nas mãos do Constitucional

Extradição tinha sido travada com uma folha avulsa fora do processo feita pelo juiz do Supremo Manuel Joaquim Braz. Relação disse na altura não entender o despacho e MP acha-o inconstitucional. Neste processo de extradição, enquanto as autoridades do Brasil aguardavam uma decisão com um jato a postos, houve até interferências políticas junto da PJ. 

A extradição de Raul Schmidt, arguido que se refugiou em Portugal da operação brasileira Lava Jato, ainda pode vir a acontecer. A decisão final de um processo cheio de avanços e recuos e de decisões controversas está agora nas mãos do Tribunal Constitucional. Os juízes do Palácio Ratton só terão de responder a uma questão simples: foi ou não inconstitucional travar uma extradição cuja decisão já havia transitado em julgado, no âmbito de um habeas corpus – uma providência que apenas pode e deve decidir se uma prisão preventiva é regular. É porque foi isso que fez o juiz da 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, Manuel Joaquim Braz: em maio do ano passado, pouco depois de outros seus colegas conselheiros do STJ terem decidido, a 12 de abril de 2018, que Raul Schmidt deveria ser entregue às autoridades brasileiras, deferiu favoravelmente um habeas corpus pedido pela defesa de Schmidt, que assim pôde continuar a viver livremente em Portugal.

Na prática, esse habeas corpus deitou por terra todo o processo de extradição com o fundamento de que o Brasil não veio buscar o arguido dentro do prazo legal de 45 dias. Pormenor: o Brasil não veio buscá-lo porque o arguido nunca esteve em situação de poder ser levado, uma vez que ia esgrimindo recursos atrás de recursos que impediam a sua extradição – além das interferências políticas  que foram surgindo. 

Todo o processo gerou mesmo muito mal-estar do outro lado do Atlântico, com os investigadores da Lava Jato a não entenderem o desfecho do caso em Portugal.

No último recurso interposto pelo Ministério Público português, para o Constitucional, feito pela procuradora Maria José Morgado, pede-se que seja analisada a decisão do juiz Manuel Joaquim Braz, alegando-se a extrapolação que aquele juiz fez de um habeas corpus, não dando outra alternativa à Relação de Lisboa que não a de arquivar tudo.

Raul Schmidt é suspeito no Brasil, no âmbito do caso Lava Jato, de ter sido intermediário de luvas que foram pagas a ex-diretores da Petrobras. O luso-brasileiro está por isso acusado dos crimes de corrupção, branqueamento de capitais e associação criminosa.

Para dificultar ainda mais esta extradição, ao abrigo da recente lei da nacionalidade, Schmidt conseguiu em tempo recorde ver reconhecida a sua nacionalidade portuguesa de origem, já depois de estar em curso o processo. Com isso tentou também travar a extradição, argumentando que a lei portuguesa só permite extraditar cidadãos que tenham cometido crimes antes de serem portugueses, o que na prática é o seu caso, ainda que na teoria não: é que a cidadania de origem que lhe foi concedida é equivalente à dos cidadãos nascidos em território nacional, o que não é o seu caso. 

1.ª operação fora do Brasil 

Em julho de 2015, Raul Schmidt veio de malas e bagagens para Lisboa com a mulher e a filha. O refúgio escolhido para fugir à acusação que estava prestes a rebentar do outro lado do Atlântico foi um 2.º andar de um prédio pombalino, junto à Sé, de três milhões de euros. Mas o sossego durou pouco tempo. No início de 2016, a primeira operação da Lava Jato fora do Brasil, levada a cabo pela Polícia Judiciária com a colaboração das autoridades brasileiras, viria a encontrar o suspeito na sua casa – nas diligências esteve presente o procurador brasileiro Diogo Castor de Matos.

O sucesso da operação, destacado nos principais meios de comunicação social do Brasil, teve como consequência um pedido de extradição formal às autoridades portuguesas. Como em qualquer extradição, existem duas fases: uma administrativa, em que cabe ao ministro da Justiça decidir se o pedido é ou não admissível, e a fase judicial, em que todas as partes dão as suas posições e é tomada uma decisão, com hipótese de recurso.

Em maio de 2016, a primeira fase já estava ultrapassada. Ao SOL, a ministra disse então ter decidido «pela admissibilidade do pedido de extradição do cidadão luso-brasileiro Raul Schmidt, pelos factos anteriores à data em que obteve a nacionalidade portuguesa». De seguida, confirmava que já nada mais estaria ao seu alcance, uma vez que o processo passara assim para a fase judicial, ou seja para os tribunais.

A decisão do Tribunal da Relação, primeira instância em caso de processos de extradição, e depois de ouvidas as razões do arguido, chegou a 7 de dezembro de 2016: Raul Schmidt seria extraditado. Mas o processo estava muito longe do fim. Schmidt não concordou e recorreu para o Supremo, que em setembro do ano seguinte confirmou a sua extradição. E no recurso seguinte, para o Constitucional, viu a última instância nacional negar provimento ao seu recurso.

nacionalidade em tempo recorde

Enquanto ia suscitando vários incidentes, somando sucessivas derrotas, Schmidt avançava com o seu processo de nacionalidade de origem, aproveitando o facto de a nova lei da nacionalidade permitir que netos de portugueses possam passar a ser considerados como portugueses de origem. No segundo semestre de 2017, foram muitos os brasileiros netos de portugueses (1637) que pediram a nacionalidade portuguesa de origem, como prevê a nova lei da nacionalidade. Mas, até janeiro de 2018, só três deles tinham tido uma decisão – um deles foi Raul Schmidt. 

O SOL sabe que, apesar de ter sido aceite o pedido de urgência pela Conservatória dos Registos Centrais, a conservadora Maria de Lurdes Serrano ainda mostrou a sua contrariedade num despacho de Novembro de 2017: «Da análise de todos os documentos que instruíram o referido pedido de urgência recebido nesta Conservatória dos Registos Centrais no passado dia 13 de outubro, parece-nos possível concluir que a atribuição da nacionalidade portuguesa, caso se venha a verificar, pode não alterar a decisão já tomada» pela Justiça. Apesar disso, a conservadora acabou por aceitar o pedido de urgência. 

trânsito em julgado

A 18 de janeiro, o Tribunal da Relação de Lisboa pediu ao Constitucional informação sobre se o processo já havia transitado em julgado para que Schmidt pudesse ser detido e entregue aos brasileiros, tendo esta instância confirmado que o trânsito em julgado já havia acontecido a 9 de janeiro. Aliás, numa decisão do Constitucional, datada de 9 de janeiro, o tribunal já havia inclusivamente rejeitado analisar uma insistência da defesa do luso-brasileiro, considerando: «As pretensões do reclamante ora apresentadas apontam, claramente, no sentido de estarmos perante incidentes pós-decisórios manifestamente infundados, e portanto com mero intuito dilatório». 

Mas Schmidt, que já aguardava em liberdade, antecipou-se ao mandado de detenção e saiu de Lisboa, tendo vindo a ser detido apenas a 3 de fevereiro. Depois de vários dias de buscas, o suspeito foi surpreendido pelos inspetores da Judiciária no Sardoal, na casa de uma estagiária que trabalhava para o seu advogado à época, Pedro Delille.

Nesta altura, a defesa do arguido, tendo em conta a obtenção da nacionalidade, pediu uma reapreciação do caso à Relação, mas mais uma vez foi contrariado, e, em simultâneo, requereu a revisão da sentença do Supremo, que foi aceite. Disparou para todos os lados até chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem queixando-se de que Portugal o queria extraditar para um país onde as cadeias não cumprem os requisitos mínimos. Mas foi mais longe, entrou na Justiça administrativa para anular a decisão da ministra da Justiça, anterior à fase judicial, defendendo  agora que as circunstâncias eram diferentes, uma vez que era como um cidadão ‘nato’. Mas este último pedido foi indeferido.

Schmidt conseguiu assim protelar um pouco mais o processo de extradição. Foi colocado em liberdade a aguardar as decisões do Supremo e do Tribunal Europeu. 

A 13 de abril de 2018, Schmidt volta a ser detido, uma vez que o Supremo considera que a extradição é legal e cumpria todos os requisitos, só faltava a resposta do Tribunal Europeu, que chegou a 2 de maio e referia que o Brasil tinha condições para receber Raul Schmidt. Nesse dia, a Relação de Lisboa ordenou a passagem de mandados de desligamento, ou seja, o mecanismo formal que permite a entrega de suspeitos a autoridades de outro país. Estava apenas pendente um habeas corpus no Supremo, uma providência que apenas poderia decidir sobre se a detenção era ou não justa no período em que aguardava a extradição. Não poderia decidir mais nada nem inviabilizar a decisão de extradição. Era isso, pelo menos, o que pensava o desembargador Augusto Lourenço, titular do processo na Relação de Lisboa. Mas não foi assim. 

interferência política na PJ

A odisseia não tem fim. Logo no próprio dia, já depois de a PJ ter recebido os mandados de desligamento, surge uma interferência do poder político. Segundo viria mais tarde a escrever o mesmo desembargador numa decisão, a 2 de maio houve uma ordem do chefe de gabinete da ministra da Justiça dada à PJ que suspendeu o processo, com o argumento de que tinha entrado uma providência cautelar administrativa. Augusto Lourenço considerou mesmo que em causa estava um caso de interferência política na Justiça, que deveria ser investigado: o caso merece a atenção da PGR, disse, lembrando que Portugal é «um Estado de direito, com independência de poderes».

O SOL teve acesso ao fax em que a PJ explica ter recebido do chefe de gabinete da ministra Francisca Van Dunem, Henrique Antunes, a seguinte mensagem dirigida ao então diretor nacional, Almeida Rodrigues: «O extraditando propôs uma providência cautelar de suspensão da eficácia do ato administrativo, pedindo a suspensão da eficácia do despacho da senhora ministra da Justiça que declarou a admissibilidade da sua extradição […] Nestas condições, até à decisão da providência ou até à resolução fundamentada, não é lícito proceder à execução da entrega. Pedia, assim, ao senhor diretor nacional que – não obstante a decisão judicial – não procedesse à entrega do extraditando».

Ou seja, a decisão do tribunal deixava de ter qualquer efeito a pedido do chefe de gabinete da ministra da Justiça. E no dia 3 de maio, o juiz desembargador deixa claro que nenhum ato administrativo está acima da Justiça: «Parece-nos inconcebível, à luz dos mais elementares princípios que regem um Estado de Direito democrático e a separação de poderes que, à revelia do processo um elemento do governo ordene à polícia a sustação de uma ordem judicial, sem previamente ter informado o tribunal, que era quem depois poderia decidir a sustação ou não». Com esta reprimenda, o juiz decide manter o mandado de detenção.

Mas voltava a ser sol de pouca dura. A decisão do pedido de habeas corpus que estava pendente no Supremo sai e, para surpresa da Relação e, segundo o SOL apurou, de várias pessoas dentro do Supremo, refere que não só Schmidt deve ser libertado, como ainda que o prazo para o extraditar já tinha sido atingido em março de 2018, ou seja, pondo em causa a decisão anterior do próprio Supremo.

Relação Mantém Extradição

Apesar do entendimento do juiz do Supremo no habeas corpus, a Relação de Lisboa considera que deve apenas respeitar a libertação do arguido, mas manter o curso da extradição determinada pelo acórdão do Supremo anterior e que tinha competência para analisar essa matéria. «Os dois acórdãos são emanados da mais alta instância judicial e têm o mesmo valor, no entanto, parecem ter interpretações diversas quanto aos prazos , nomeadamente a forma de os contar e relevância ou não, que têm ou devem ter, as suspensões ocorridas por exclusiva intervenção do arguido extraditando, através de recursos sucessivos com vista a esgotar esses prazos. Perante este cenário e sendo certo que nenhum deles invalidou a decisão transitada em julgado que ordenou a extradição, cumpre ouvir as partes», suspendendo para já os mandados.

Em resposta, o Brasil foi claro, mostrando a sua incompreensão com a interpretação de que o prazo de extradição tinha expirado, quando na verdade nem sequer começou: «Em rigor, o prazo de 45 dias acima referido só deveria ter início após a efetiva possibilidade de entrega para transferência do extraditando ao país requerente, que ainda não ocorreu».

O Tribunal da Relação acabou por concluir que apesar da contradição do Supremo havia condições para seguir a extradição: «Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar».

A decisão do juiz desembargador Augusto Lourenço provocou uma reação enérgica da defesa de Raul Schmidt, na altura a cargo do escritório Uria Menéndez / Proença de Carvalho, disparando para diversos lados e tentando travar a decisão da Justiça: foram enviados requerimentos com a nota «Muito Urgente» para a Relação de Lisboa (ameaçando o juiz com um processo disciplinar), para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e para o coletivo que decidiu a favor do arguido.

O presidente do Supremo nada fez para alterar o sentido da decisão da Relação de Lisboa e a Relação também não aceitou dar seguimento ao pedido. 

O estranho Papel do juiz do STJ

Mas se tudo parecia estar alinhado na extradição, cujo processo já estava na Relação, o conselheiro Manuel Joaquim Braz decide enviar ao processo um esclarecimento pouco comum, numa folha avulsa, datada de 24 de maio: «O acórdão que deferiu a petição de habeas corpus , em meu entender, é claro no sentido de que no processo de extradição em que a providência foi requerida se esgotou o prazo de entrega do ora requerente às autoridades judiciárias do Brasil, sendo, após esse esgotamento, ilegal a sua detenção para esse efeito, seja por que período for».

Juiz da Relação Acaba vencido

Contra tudo aquilo que era o curso do processo, o juiz Augusto Lopes foi obrigado desta forma pelo STJ a arquivar tudo, impedindo a extradição. Mas deixou claro que o fazia contra sua vontade.

«Não obstante o expediente remetido a este Tribunal proveniente do Supremo Tribunal de Justiça, não se enquadrar em nenhuma das formas processuais de recurso ou reclamação incidentes sobre o nosso despacho de 18.05.2018 […] ficaram para nós sanadas quaisquer dúvidas interpretativas sobre o alcance das decisões proferidas quanto à extradição ou não, do arguido Raul Schmidt Júnior», refere numa decisão tomada logo após ter recebido a folha avulsa de Manuel Joaquim Braz.

Jato A postosno Brasil

As autoridades brasileiras viram assim o prazo legal para vir buscar o arguido ser excedido sem que nunca tivesse sequer tido início. Ao que o SOL apurou, do outro lado do Atlântico estava preparado um jato para vir buscar o arguido, que acabou por nem sequer levantar voo.
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Extradição de arguido do lava jato nas mãos do Constitucional
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A extradição de Raul Schmidt, arguido que se refugiou em Portugal da operação brasileira Lava Jato, ainda pode vir a acontecer. A decisão final de um processo cheio de avanços e recuos e de decisões controversas está agora nas mãos do Tribunal Constitucional. Os juízes do Palácio Ratton só terão de responder a uma questão simples: foi ou não inconstitucional travar uma extradição cuja decisão já havia transitado em julgado, no âmbito de um habeas corpus – uma providência que apenas pode e deve decidir se uma prisão preventiva é regular. É porque foi isso que fez o juiz da 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, Manuel Joaquim Braz, em maio do ano passado, pouco depois de o STJ, ou seja, a mesma instância, ter concluído a 12 de abril de 2018 que Raul Schmidt deveria ser entregue às autoridades brasileiras.

Na prática, esse habeas corpus deitou por terra todo o processo de extradição com o fundamento de que o Brasil não veio buscar o arguido dentro do prazo legal de 45 dias. Pormenor: o Brasil não veio buscá-lo porque o arguido nunca esteve em situação de poder ser levado, uma vez que ia pondo recursos atrás de recursos que impediam a sua extradição – além das interferências políticas  que foram surgindo. 

Todo o processo gerou mesmo muito mal-estar do outro lado do Atlântico, com os investigadores da Lava Jato a não entenderem o desfecho do caso em Portugal.

No último recurso interposto pelo Ministério Público português, para o Constitucional, feito pela procuradora Maria José Morgado, pede-se que seja analisada a decisão do juiz Manuel Joaquim Braz, uma vez que se considera inconstitucional a extrapolação que aquele juiz fez de um habeas corpus, não dando outra alternativa à Relação de Lisboa que não a de arquivar tudo com base numa providência que não tinha tal abrangência.

Raul Schmidt é suspeito no Brasil, no âmbito do caso Lava Jato, de ter sido intermediário de luvas que foram pagas a ex-diretores da Petrobras. O luso-brasileiro está por isso acusado dos crimes de corrupção, branqueamento de capitais e associação criminosa.

Para dificultar ainda mais esta extradição, ao abrigo da recente lei da nacionalidade, Schmidt conseguiu em tempo recorde ver reconhecida a sua nacionalidade portuguesa de origem, já depois de estar em curso o processo. Com isso tentou também travar a extradição, argumentando que a lei portuguesa só permite extraditar cidadãos que tenham cometido crimes antes de serem portugueses, o que na prática é o seu caso, ainda que na teoria não: é que a cidadania de origem que lhe foi concedida é equivalente a dizer que nasceu em território nacional.

1.ª operação fora do Brasil

Em julho de 2015, Raul Schmidt veio de malas e bagagens para Lisboa com a mulher e a filha. O refúgio escolhido para fugir à acusação que estava prestes a rebentar do outro lado do Atlântico foi um 2.º andar de um prédio pombalino, junto à Sé, de três milhões de euros. Mas o sossego durou pouco tempo. No início de 2016, a primeira operação da Lava Jato fora do Brasil, levada a cabo pela Polícia Judiciária com a colaboração das autoridades brasileiras, viria a encontrar o suspeito na sua casa – nas diligências esteve presente o procurador brasileiro Diogo Castor de Matos.

O sucesso da operação, destacado nos principais meios de comunicação social do Brasil, teve como consequência um pedido de extradição formal às autoridades portuguesas. Como em qualquer extradição, existem duas fases: uma administrativa, em que cabe ao ministro da Justiça decidir se o pedido é ou não admissível, e a fase judicial, em que todas as partes dão as suas posições e é tomada uma decisão, com hipótese de recurso.

Em maio de 2016, a primeira fase já estava ultrapassada. Ao SOL, a ministra disse então ter decidido «pela admissibilidade do pedido de extradição do cidadão luso-brasileiro Raul Schmidt, pelos factos anteriores à data em que obteve a nacionalidade portuguesa». De seguida, confirmava que já nada mais estaria ao seu alcance, uma vez que o processo passara assim para a fase judicial, ou seja para os tribunais.

A decisão do Tribunal da Relação, primeira instância em caso de processos de extradição, e depois de ouvidas as razões do arguido, chegou a 7 de dezembro de 2016: Raul Schmidt seria extraditado. Mas o processo estava muito longe do fim. Schmidt não concordou e recorreu para o Supremo, que em setembro do ano seguinte confirmou a sua extradição. E no recurso seguinte, para o Constitucional, viu a última instância nacional negar provimento ao seu recurso.

nacionalidade em tempo recorde

Enquanto ia suscitando vários incidentes, somando sucessivas derrotas, Schmidt ia avançando com o seu processo de nacionalidade de origem, aproveitando o facto de a nova lei da nacionalidade permitir que netos de portugueses pudessem passar a ser considerados portugueses de origem. No segundo semestre de 2017, foram muitos os brasileiros netos de portugueses (1637) que pediram a nacionalidade portuguesa de origem, como prevê a nova lei da nacionalidade. Mas, até janeiro de 2018, só três deles tinham tido uma decisão – um deles foi Raul Schmidt. 

O SOL sabe que, apesar de ter sido aceite o pedido de urgência pela Conservatória dos Registos Centrais, a conservadora Maria de Lurdes Serrano ainda mostrou a sua contrariedade num despacho de Novembro de 2017: «Da análise de todos os documentos que instruíram o referido pedido de urgência recebido nesta Conservatória dos Registos Centrais no passado dia 13 de outubro, parece-nos possível concluir que a atribuição da nacionalidade portuguesa, caso se venha a verificar, pode não alterar a decisão já tomada» pela Justiça. Apesar disso, a conservadora acabou por aceitar o pedido de urgência.

trânsito em julgado

A 18 de janeiro, o Tribunal da Relação de Lisboa pediu ao Constitucional informação sobre se o processo já havia transitado em julgado para que Schmidt pudesse ser detido e entregue aos brasileiros, tendo esta instância confirmado que o trânsito em julgado já havia acontecido a 9 de janeiro. Aliás, numa decisão do Constitucional, datada de 9 de janeiro, o tribunal já havia inclusivamente rejeitado analisar uma insistência da defesa do luso-brasileiro, considerando: «As pretensões do reclamante ora apresentadas apontam, claramente, no sentido de estarmos perante incidentes pós-decisórios manifestamente infundados, e portanto com mero intuito dilatório». 

Mas Schmidt, que já aguardava em liberdade, antecipou-se ao mandado de detenção e saiu de Lisboa, tendo vindo a ser detido apenas a 3 de fevereiro. Depois de vários dias de buscas, o suspeito foi surpreendido pelos inspetores da Judiciária no Sardoal, na casa de uma estagiária que trabalhava para o seu advogado à época, Pedro Delille.

Nesta altura, a defesa do arguido pede uma reapreciação do caso à Relação tendo em conta novos elementos, o que foi indeferido, e pediu a revisão da sentença do Supremo, que foi aceite. Também se queixou ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de que Portugal o queria extraditar para um país onde as cadeias não cumprem os requisitos mínimos. Mas foi mais longe, entrou na Justiça administrativa para anular a decisão da ministra da Justiça, anterior à fase judicial, defendendo  agora que as circunstâncias eram diferentes, uma vez que era como um cidadão ‘nato’. Mas este último pedido foi indeferido.

Schmidt conseguiu assim protelar um pouco mais. Foi colocado em liberdade a aguardar as decisões do Supremo e do Tribunal Europeu. 

A 13 de abril de 2018, Schmidt volta a ser detido, uma vez que o Supremo considera que a extradição é legal e cumpre todos os requisitos, só faltava a resposta do Tribunal Europeu, que chegou a 2 de maio e referia que o Brasil tinha condições para receber Raul Schmidt. Nesse dia, a Relação de Lisboa ordenou a passagem de mandados de desligamento, ou seja, o formalismo que permite a entrega de suspeitos a autoridades de outro país. Estava apenas pendente um habeas corpus no Supremo, uma providência que apenas poderia decidir sobre se a detenção era ou não justa no período em que aguardava a extradição. Não poderia decidir mais nada nem inviabilizar a decisão de extradição. Pelo menos, era isso que pensava o desembargador da Relação Augusto Lourenço. Mas não foi assim. 

interferência política na PJ

Logo no próprio dia, já depois de a PJ ter recebido os mandados de desligamento, surge uma interferência do poder político. Segundo viria mais tarde a escrever o mesmo desembargador numa decisão, a 2 de maio houve uma ordem do chefe de gabinete da ministra da Justiça dada à PJ que suspendeu o processo, com o argumento de que tinha entrado uma cautelar administrativa. Augusto Lourenço considerou mesmo que em causa estava um caso de interferência política na Justiça que deveria ser investigado: o caso merece a atenção da PGR, disse, lembrando que Portugal é «um Estado de direito, com independência de poderes».

O SOL teve acesso ao fax em que a PJ explica ter recebido do chefe de gabinete da ministra Francisca Van Dunem, Henrique Antunes, a seguinte mensagem dirigida ao então diretor nacional, Almeida Rodrigues: «O extraditando propôs uma providência cautelar de suspensão da eficácia do ato administrativo, pedindo a suspensão da eficácia do despacho da senhora ministra da Justiça que declarou a admissibilidade da sua extradição […] Nestas condições, até à decisão da providência ou até à resolução fundamentada, não é lícito proceder à execução da entrega. Pedia, assim, ao senhor diretor nacional que – não obstante a decisão judicial – não procedesse à entrega do extraditando».

Ou seja, a decisão do tribunal deixava de ter qualquer efeito a pedido do chefe de gabinete da ministra da Justiça. E no dia 3 de maio, o juiz desembargador deixa claro que nenhum ato administrativo está acima da Justiça: «Parece-nos inconcebível, à luz dos mais elementares princípiosque regem um Estado de Direito democrático e a separação de poderes que, à revelia do processo um elemento do governo ordene à polícia a sustação de uma ordem judicial, sem previamente ter informado o tribunal, que era quem depois poderia decidir a sustação ou não». Com esta reprimenda, o juiz decide manter o mandado de detenção.

Mas voltava a ser sol de pouca dura. A decisão do pedido de habeas corpus que estava pendente no Supremo sai e, para surpresa da Relação e, segundo o SOL apurou, de várias pessoas dentro do Supremo, refere que não só Schmidt deve ser libertado, como ainda que o prazo para o extraditar já tinha sido atingido em março de 2018, ou seja, pondo em causa a decisão anterior do próprio Supremo. 

Relação Mantém Extradição

Apesar do entendimento do juiz do Supremo no habeas corpus, a Relação de Lisboa considera que deve apenas respeitar a libertação do arguido, mas manter o curso da extradição determinada pelo acórdão do Supremo anterior e que tinha competência para analisar essa matéria. «Os dois acórdãos são emanados da mais alta instância judicial e têm o mesmo valor, no entanto, parecem ter interpretações diversas quanto aos prazos , nomeadamente aforma de os contar e relevância ou não, que têm ou devem ter, as suspensões ocorridas por exclusiva intervenção do arguido extraditando, através de recursos sucessivos com vista a esgotar esses prazos. Perante este cenário e sendo certo que nenhum deles invalidou a decisão transitada em julgado que ordenou a extradição, cumpre ouvir as partes», suspendendo para já os mandados.

Em resposta, o Brasil foi claro, mostrando a sua incompreensão com a interpretação de que o prazo de extradição tinha expirado, quando na verdade nem sequer começou: «Em rigor, o prazo de 45 dias acima referido só deveria ter início após a efetiva possibilidade de entrega para transferência do extraditando ao país requerente, que ainda não ocorreu».

O Tribunal da Relação acabou por concluir que apesar da contradição do Supremo havia condições para seguir a extradição: «Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar».

A decisão do juiz desembargador Augusto Lourenço provocou uma reação enérgica da defesa de Raul Schmidt, na altura a cargo do escritório Uria Menéndez / Proença de Carvalho, disparando para diversos lados e tentando travar a decisão da Justiça: foram enviados requerimentos com a nota «Muito Urgente» para a Relação de Lisboa (ameaçando o juiz com um processo disciplinar), para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e para o juiz Manuel Joaquim Braz, o único a decidir a favor do arguido.

O presidente do Supremo nada fez para alterar o sentido da decisão da Relação de Lisboa e a Relação também não aceitou dar seguimento ao pedido. 

O estranho Papel do juiz do STJ

Mas se tudo parecia estar alinhado na extradição, cujo processo já estava na Relação, o conselheiro Manuel Joaquim Braz decide enviar ao processo um esclarecimento pouco comum, numa folha avulsa, datada de 24 de maio: «O acórdão que deferiu a petição de habeas corpus , em meu entender, é claro no sentido de que no processo de extradição em que a providência foi requerida se esgotou o prazo de entrega do ora requerente às autoridades judiciárias do Brasil, sendo, após esse esgotamento, ilegal a sua detenção para esse efeito, seja por que período for».

Juiz da Relação Acaba vencido

Contra tudo aquilo que era o curso do processo, o juiz Augusto Lopes foi obrigado desta forma pelo STJ a arquivar tudo, impedindo a extradição. Mas deixou claro que o fazia contra sua vontade.

«Não obstante o expediente remetido a este Tribunal proveniente do Supremo Tribunal de Justiça, não se enquadrar em nenhuma das formas processuais de recurso ou reclamação incidentes sobre o nosso despacho de 18.05.2018 […] ficaram para nós sanadas quaisquer dúvidas interpretativas sobre o alcance das decisões proferidas quanto à extradição ou não, do arguido Raul Schmidt Júnior», refere numa decisão tomada logo após ter recebido a folha avulsa de Manuel Joaquim Braz.

Jato a postos no Brasil

As autoridades brasileiras viram assim o prazo legal para vir buscar o arguido ser excedido sem que nunca tivesse sequer tido início. Ao que o SOL apurou, do outro lado do Atlântico estava preparado um jato para vir buscar o arguido, que acabou por nem sequer levantar voo.