Limpeza das florestas pode correr mal já este verão

Para Marcelo, o relatório sobre os incêndios de outubro é evidente e pode haver aspetos a rever na estratégia. «Pode ser que o Governo ouça o Presidente da República, já que não ouve a comunidade científica», diz ao SOL Joaquim Sande Silva, um dos peritos da comissão independente.

Os peritos estão preocupados com o impacto das novas regras de limpeza das florestas e alertam que os efeitos podem sentir-se já este verão. A constatação de que a legislação revista este ano é «muito pouco justificada tecnicamente» surge no relatório da comissão independente de peritos sobre os incêndios de outubro, entregue no Parlamento. Marcelo leu e diz que o documento é claro e evidente. «Se se entender que há aspetos a rever e a retocar em função das novas recomendações, o Presidente da República está disposto para dar apoio imediato», avisou o Presidente da República. 

O recado está dado e a posição agradou aos peritos. «Pode ser que o Governo ouça o Presidente da República, já que não ouve a comunidade científica», diz ao SOL Joaquim Sande Silva, membro da comissão. 

Em causa está o decreto–Lei n.º 10/2018, que em fevereiro alterou as regras de limpeza agrícola, a ‘gestão de combustível’.

Este diploma veio estabelecer que a distância entre as copas das árvores deve ser de 10 metros nos povoamentos de pinheiro bravo e eucalipto, casos em que devem estar desramadas até pelo pelo menos 4 metros de altura. Para as restantes espécies de árvores, a distância deve ser de quatro metros. Os arbustos não podem exceder os 50 centímetros de altura e a vegetação mais pequena os 20 centímetros, havendo a obrigação de limpar uma área de 50 metros em torno das casas e de 100 metros em torno das povoações.

A distância fixada para as copas das árvores é um dos problemas suscitados no relatório, que considera que no caso de algumas espécies folhosas – como é o caso dos carvalhos – impor uma grande separação pode mesmo ser «contraproducente», já que é o efeito da humidade nas folhas que serve de barreira ao fogo. Mas mesmo entre qualquer espécie de árvore, uma distância excessiva pode ter o efeito contrário ao desejado, pois permite uma maior entrada da luz e disponibilidade de água e nutrientes para os arbustos se desenvolverem, «o que se traduz numa mais rápida e maior recuperação dos combustíveis que se pretende controlar, o que vai exigir uma manutenção mais frequente». Espécies invasoras como as acácias, notam os investigadores, beneficiarão em particular de maiores distâncias. Por fim, uma excessiva abertura das copas das árvores leva a uma maior velocidade do vento ao nível do solo, o que «potencia a velocidade de propagação do fogo». Em suma, «importa uma avaliação criteriosa destas matérias para que o efeito benéfico da descontinuidade das copas para algumas espécies não seja ultrapassado pelos efeitos negativos».

Regras vão obrigar a limpezas mais frequentes

Joaquim Sande Silva, especialista em ecologia do fogo e professor da Escola Superior Agrária de Coimbra, explica que não há estudos que permitam saber em rigor qual a distância mais adequada, mas no caso das folhosas «o ideal são copas juntas, de modo a impedir a passagem da luz». 

Para o especialista, o mais importante é gerir o combustível à superfície e, quanto menos árvores, mais frequente terá de ser essa gestão, apontando para algo anual.

Paulo Fernandes, especialista em fogos florestais da da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e também membro da comissão de peritos, concorda que é difícil definir receitas de aplicação geral. No caso das folhosas como castanheiros e carvalhos, em que as copas dificilmente ardem, o melhor é, porém, o adensamento das copas e não o afastamento. «Maximiza a humidade e minimiza a radiação solar, velocidade do vento e temperatura ambiente», resume o perito.

Paulo Fernandes sublinha que, em todo o caso, o espaçamento entre copas é um fator secundário se a vegetação mais rasteira estiver tratada e as árvores devidamente desramadas. Pegando nas atuais distâncias entre copas, quanto muito fariam sentido na vizinhança imediata de casas, num raio de 10 metros, diz o perito. «Daí em diante, dois a quatro metros são suficientes». Fernandes acredita mesmo que a obrigação de limpar terrenos numa área de 50 metros das casas e 100 metros das povoações nada acrescenta em termos de proteção acrescida de estruturas e pessoas. «Tanto quanto sei, em nenhum país a distância de proteção difere entre casas individuais e aglomerados urbanos. A ênfase deve ser colocada nos primeiros 10m em redor da casa, que devem estar totalmente desprovidos de matéria inflamável, seja vegetal ou de outra origem». Também Joaquim Sande Silva acredita que, mais do que cortar árvores, o essencial é gerir a vegetação herbácea e desramar os andares inferiores. «O corte de árvores é, em muitos casos, contraproducente».

O SOL tentou perceber junto do Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural se, à luz das recomendações feitas pelos peritos, se a legislação será revista, mas não teve resposta. Paulo Fernandes e Joaquim Sande Silva reconhecem que não foram ouvidos neste processo e são unânimes de que alguns impactos poder-se-ão fazer sentir já na próxima estação quente, sobretudo em incêndios que se aproximem de habitações. «No que toca ao efeito num incêndio que se acerque das casas, os efeitos são imediatos. O efeito de favorecimento do crescimento vegetal por entrada de luz verificar-se-á posteriormente», diz Paulo Fernandes. A redução da densidade das copas contribuirá para o aumento do vento, da temperatura e para a diminuição da humidade. Sande Silva também alerta para o risco de uma maior secagem dos combustíveis finos – erva, pequenos ramos e folhas caídas no solo até 6 mm de diâmetro – o que facilita a propagação do fogo.

Outro receio que, para os peritos, não é de somenos é o atual calendário, que inicialmente dava como limite para os particulares limparem os terrenos o dia 15 de março – prazo entretanto prolongado até ao final de maio sem que haja a cobrança de multas. «É a partir de março que a vegetação tem o maior crescimento. Quando chegarmos a junho, muitas das áreas onde houve intervenção já terão novamente vegetação contínua, pronta a arder no verão», avisa Joaquim Sande Silva. Paulo Fernandes acrescenta que é preciso especial cuidado com os solos mais férteis ou mais fundos, com uma natureza mais agrícola do que florestal, em que mais facilmente a vegetação torna a crescer.

À imprensa, o presidente da comissão de peritos João Guerreiro sublinhou que é importante a compreensão de que a limpeza de terrenos é um pilar da prevenção dos fogos, sobretudo depois de anos em que o foco esteve apenas no combate. O problema está no apuramento da lei. «Deveria haver critérios técnicos mais diversificados, em função do coberto vegetal, das espécies florestais». O relatório acusa uma mágoa maior. «O decreto–Lei n.º 10/2018 é um exemplo de deficiente uso do conhecimento existente e de uma comunicação pública muito pouco rigorosa. É pena que estas deficiências prejudiquem o enorme esforço feito e a enorme capacidade de mobilização (nunca verificada a este nível), da sociedade em geral, provocada por estas medidas e pelas suas formas de divulgação», lê-se. O diploma em causa, promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa e aprovado em conselho de ministro como o visto de sete governantes, além de António Costa, refere terem sido ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses e a Associação Nacional de Freguesias, mas não invoca nenhum membro da academia.