Luto: aprender a dominar a saudade

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Cristina Felizardo fala com conhecimento de causa: na Apelo, além da formação específica para lidar com pessoas em luto, todos os técnicos passaram pessoalmente por perdas dolorosas. E a diretora não é exceção. Nesta associação, conhecem de cor e salteado o caminho que os enlutados percorrem. “Não é que os outros técnicos de outras associações não consigam ajudar, mas quem já viveu uma perda profunda já tem o mapa da dor, enquanto o resto ainda anda de GPS”.

Na Apelo, podem ter as coordenadas para se sair do luto, mas todos os que ali trabalham sabem bem que este é um processo extremamente solitário, um percurso individual que apenas quem sofreu a perda pode percorrer. “Só a pessoa que perdeu alguém é que sabe que tipo de laço tinha com quem morreu, mais ninguém pode opinar sobre o que ela deve fazer ou sentir”. E num processo que é sempre difícil e em que as pessoas já estão tão frágeis, há frases que para além de não ajudarem podem mesmo magoar profundamente. “Por exemplo, nas perdas de bebés. Dizer ‘deixa lá, ele é tão pequenino que logo fazes outro’. Não há coisa mais difícil de ouvir. Ou então sobre uma avó, mas que era o ente querido mais fantástico para aquele neto. É normal tentar confortar a criança a dizer ‘pronto, é assim, já era velhinho’. Nós sabemos que era, mas não damos espaço aquele neto para chorar a avó. Devem validar-se sempre todos os processos de dor e raiva”. Estes processos, para a Apelo, dividem-se em quatro vivências do luto: “Aqui falamos vivências porque acreditamos que as fases são estanques, quando se passa uma já não se volta atrás. Nas vivências, o processo do luto faz-se – apesar de nunca se regressar ao passado – em oscilação, é mais como se fosse uma montanha russa”, explicou ao BI.

Se os caminhos e os tempos são diferentes para todos, há, no entanto, uma certeza: todos os lutos se iniciam da mesma forma.

O choque. Não acredito, não pode ser ele, deve ser engano

“Quando se recebe a comunicação da má notícia, as pessoas experimentam o choque”, diz Cristina. É inevitavelmente com a notícia da perda que se dá início ao processo de luto. Esta vivência é caracterizada por torpor, dormência e uma negação ativa. “Quantas vezes não ouvimos a frase ‘não acredito no que me estás a dizer’”, exemplifica a diretora da Apelo. “Essa frase é muito real porque a pessoa efetivamente não acredita naquilo que está a ouvir”. Por ser uma fase muito violenta e exigente em termos físicos, estima-se que o choque possa durar, no máximo, uma semana. “As pessoas sentem apatia, têm ataques de choro agudo e de pânico, ansiedade, palpitações e até desmaios. Mostram por norma sinais de um raciocínio muito confuso, e têm o discurso pouco organizado. No caso da apatia, é como se esta reação fosse uma espécie de véu que fica a toldar a realidade, para que a pessoa se mantenha funcional e consiga executar tarefas durante o dia”, conclui Cristina.

Marília Seabra, designer de moda de 26 anos, descreve o momento em que soube que o pai tinha morrido como se fosse ontem. Mas não foi, foi há 13 anos “Na altura, morava em Caminha com a minha mãe e irmãs. O meu pai era topógrafo e, durante a semana, trabalhava em Lisboa, juntando-se a nós aos fins de semana”.

Não tem de fazer o mínimo esforço de memória para se lembrar. “Era de noite e estava muito calor, estávamos a 25 de junho de 2002. A minha mãe entrou em casa e eu e a minha irmã ouvimo-la a falar ao telefone, percebemos logo que algo estava muito errado. Depois de desligar, disse-nos que tinha havido um acidente e que o meu pai estava em coma”. A tenra idade não foi, no entanto, impeditiva de perceber de imediato o significado daquela mentira piedosa. “Mesmo não querendo acreditar, percebi imediatamente o que aquele coma queria dizer e soube que o meu pai tinha morrido”. A partir daqui, Marília diz que foi para a varanda olhar a lua e os seus pensamentos emaranham-se uns nos outros. “Sempre que vejo uma lua cheia, sou transportada para aquele momento”.

Podem ter passado 13 anos, mas Marília – Kika, para os amigos e família – não consegue falar desta noite sem chorar. As pausas que faz no discurso são contínuas. “No dia seguinte, metemos tudo no carro e fomos para Almeirim, onde morava o resto da família. Lembro-me de olhar para trás no carro e de ver o meu cão, um pastor alemão, ficar cada vez mais pequeno”. A família nunca mais morará em Caminha.

Também Luís Costa, 38 anos e mais conhecido por DJ Magazino, sofreu uma perda profunda no final de 2009 que chegou mesmo a fazê-lo deixar a sua ocupação profissional de lado durante uns meses. No dia 22 de dezembro, tinha acabado de chegar ao país para passar a quadra natalícia em família quando passou por um acidente de carro na A2, direção Setúbal-Lisboa. Nem reparou que o carro sinistrado lhe era conhecido: lá dentro a sua mãe, de 59 anos, acabara de perder a vida. Luís foi a primeira pessoa a saber: “Ainda estava a conduzir e recebi a chamada de um Guarda Nacional Republicano, em cima do tabuleiro da ponte”. Acompanhado por um amigo, Luís desorientou-se e teve de parar imediatamente o carro.

O funeral teve lugar dois dias depois, a 24 de dezembro. “Além de ser véspera de Natal, era o dia de anos do meu pai”, conta Luís. Os meses – e os anos – que se seguiram foram agonizantes para o DJ.

A descrença. Quando o passado se intromete no presente

 “Após o choque inicial, há uma fase mais demorada que é o momento da descrença”, explica Cristina. “As pessoas oscilam entre o desacreditar e permanecer no passado com pequenos momentos em que a realidade se impõe, e isso é extremamente doloroso”.

Enquanto vivem a descrença da perda, os enlutados buscam continuamente o passado. “Nesta busca a pessoa em luto está a procurar manter viva aquilo que era uma realidade para si, que era ter o ente querido perto. Há, por exemplo, necessidade de estar sempre a falar da pessoa que partiu. Não é raro recebermos mães que trazem peças de roupa dos filhos para sentir o cheiro, ou pais que mantêm os quartos inalterados neste período”, enumera a vice-presidente da Apelo. “Preservar desta forma a memória tem um efeito agridoce, se manter o quarto pode dar algum conforto, também traz um efeito de consciencialização: o quarto está assim porque o filho não está lá”.

De acordo com a especialista, o sentimento que melhor descreve a vivência da descrença é “uma agonia sufocante”, que não se sabe ao certo quanto pode durar. “Não há fórmulas para contabilizar o tempo que esta fase – ou as seguintes – demoram. Na primeira há, porque é impossível ficar em negação tanto tempo. O tempo que se permanece em descrença depende da intensidade do vínculo, dos traços de caráter da própria pessoa e de experiências passadas que lhe tenham dado resiliência ou estratégias para se conseguir libertar deste processo. Mas pode variar entre três meses, um ano ou uma vida”, considera a diretora.

Outra das características comuns a esta fase é ligar para a pessoa que partiu de uma forma quase inconsciente. Luís Costa passou por isto: “O meu trabalho faz com que viaje muito, e um dos meus rituais era ligar para a minha mãe assim que chegava”. Nos meses seguintes à morte da mãe, cada vez que chegava a um aeroporto, Luís ligava quase sem pensar. “Além disso fiquei completamente fixado no número 22 – era o número preferido da minha mãe, ela morreu no dia 22, no quilómetro 22 da A2. Via o 22 nas matrículas dos carros, no despertador, na televisão e isso fazia-me sofrer imenso”. Percebeu que precisava de ajuda, e foi nessa altura que procurou um psicólogo.

O reconhecimento . A explosão da dor

Ao reconhecer que precisava de ajuda, Luís reconheceu também a morte da mãe. “O reconhecimento é uma catarse, por vezes é mais doloroso até que o momento da comunicação da notícia”, considera Cristina Felizardo. Esta é a fase da verdadeira consciencialização da perda, é o momento em que se largam os laços com o passado. “As pessoas assumem que é uma situação irreversível, e isto traz, de certa forma, a paz perdida pois acaba com a agonia”.

O preço para que isto aconteça paga-se com um verdadeiro turbilhão de sentimentos. “Choro incontrolável, tristeza profunda, por vezes raiva, apatia, explosões, um misto de emoções mas em forma da catarse”, diz a especialista.

Este é um momento de viragem, que Marília Seabra não sabe ainda ao certo se viveu. “Não me sinto revoltada com a morte do meu pai, sei que ele partiu mas, ao mesmo tempo, isso ainda me marca profundamente”. Prova disso é, até há pouco, ainda sonhar que não o conseguia encontrar. Evoca continuamente memórias felizes de infância e, tal como no momento em que recordou a noite em que soube a notícia, continua a ter manifestações de dor aguda. Considera que isso se prende com dois fatores: a ligação emocional que sentia em relação ao pai e a idade que tinha quando o acidente aconteceu. “Perder o meu pai com 13 anos marcou-me profundamente”. Essa perda tem, segundo a própria, continuado consigo nas diferentes fases ao longo do seu crescimento. “E, provavelmente, ainda não a superei”, conclui.

Superação. A saudade serena ou o luto crónico

Passados dois anos da morte da sua mãe, Luís Costa deixou de ver o 22 como um símbolo mau e até lançou em 2013 uma faixa intitulada ‘22’, uma homenagem à mãe que “adorava o meu trabalho”. Quatro anos depois da tragédia, voltou a celebrar o seu próprio aniversário, apesar de assumir que o Natal será sempre uma época estranha. Num dos muitos aeroportos que frequenta nas deslocações em trabalho, resolveu apagar o número da mãe que mantinha no telemóvel. “Não fazia sentido continuar a tê-lo, só me estava a magoar”. Libertou-se do processo de luto, que, assume, “ter conseguido encerrar”. “Não vou mentir e dizer que penso na minha mãe todos os dias, porque não é verdade. Penso nela de vez em quando com carinho e saudade, tenho por vezes o ritual de ir ao cemitério mas já não é um sentimento que me consuma”, conclui.

Esta é, segundo Cristina, a fase onde se reaprende a voltar a bem viver. “ Depois da agonia e da tormenta, encontra-se serenidade”. A superação pode ser feita, no entanto, de duas formas distintas, pela via da aceitação – como aconteceu a Luís – ou da conformação, mais comum a pais que perderam os filhos. “Na aceitação há um desapego completo em relação ao vínculo afetivo, aqui pode ser, por exemplo, no caso de uma viuvez ou de um divórcio (o luto não é só para mortes). Também costuma acontecer em relação à perda dos pais. Nestes casos, aquilo que fica é saudade, mas sem agonia”.

Por outro lado, há quem supere pela via da conformação. “Isto é muito comum em relação aos pais que perdem os filhos, que é um dos lutos mais agudos. Fica sempre um luto crónico, uma dor para a vida. As pessoas aprendem a viver com ela e encontram paz, mas têm de aprender a viver com aquela moinha que não passa mais”, considera.

Para ajudar as pessoas a chegar a estas fases, a Apelo tem espalhados conselheiros do luto por todo o território do país. “Quem precisar de apoio, basta enviar um pedido no site que terá uma resposta no prazo máximo de dois dias”, explica Cristina Felizardo. Os conselheiros do luto existem em Portugal desde 2011 e são formados por professores universitários da área que, por norma, também sofreram perdas. “O nome conselheiro até é mal atribuído, nós não somos especialistas da vida de ninguém nem damos conselhos. Aquilo que fazemos é apoiar a pessoa para que, ao longo da sessão, vá descobrindo o que é mais confortável para si e as suas próprias estratégias”. Muitos dos conselheiros procuraram previamente ajuda na associação. “São assistentes sociais, professores, psicólogos, polícias, enfermeiros, que procuraram ajuda quando se viram envolvidos num processo de luto. Outros conselheiros vieram por interesse profissional, mas que tinham problemas de luto, alguns já resolvidos”.

O apoio é prestado através de sessões presenciais, realizadas em Lisboa e Aveiro – para quem more longe destes centros há apoio via telemóvel e teleconferência. “Não é tão eficaz, mas numa fase aguda um telefonema é melhor que nada”, diz a diretora. “No fundo, a chave é a segurança e a empatia. Nestas sessões as pessoas que estão a sofrer podem desabafar, gritar, chorar, dizer tudo o que lhe vem à cabeça livre de censura e de julgamento. São ouvidas com bastante disponibilidade e acima de tudo com compreensão, porque falamos todos a mesma língua”.

E a língua falada por quem já perdeu alguém é, provavelmente, a melhor forma para lhe dizer: ao fundo do túnel, há uma luz. Afinal, segundo Santo Agostinho, “a morte é simplesmente passar para o outro lado”. Aos que ficam, resta encontrar o caminho para dominar, serenamente, a saudade.