na cozinha de saramago e pilar, com uma corona em cada uma das nossas mãos, lembrámos baltasar sete sóis. maneta de guerra, iluminado pelo idealismo de bartolomeu, que sonhava voar por passarolas e desconhecidos mundos, ‘condenado’ a só ver à luz e perseguido pelos homens das sombras, a inquisição. um sábio, um dos maiores que conheci, disse-o a saramago, agradeci-lhe. fora ele que mo apresentara nas páginas de um livro, memorial do convento. por isso, naquela tarde em lanzarote bebi a corona muito lentamente, tão lentamente que, às tantas, josé avisou-me que assim ficava choca. que não, josé. não vês que procuro?

2.

um dia descobri seth, o egípcio. irmão de osíris, ovelha negra de um rebanho de deuses que haveria de semear no coração dos homens a maldade, o pó do deserto, o veneno das serpentes, o ciúme e a traição. é o diabo, o inferno. não o quis aprofundar, porque o inferno é um lugar que prefiro desabitado, quando muito uma memória de um livro de infância e de um qualquer animal vestido de chifres. no inferno existimos nós se o que temos na cabeça nos for insuportável, o pior de todos os infernos é aqui. aqui dentro.

3.

levei os filhos à lagoa das sete cidades. ficámos em silêncio, de olhos muito abertos, em espera talvez, como eu na corona de saramago, que a princesa antília pudesse sair outra vez das águas à procura do seu pastor, do seu baltasar. o nuno costa santos explicou aos meus filhos e aos dele que as lagoas das sete cidades têm duas cores por causa das lágrimas da princesa e do pastor; choraram toda a noite lágrimas azuis e verdes, azuis de antília e verdes do pobre rapaz. o mais novo dos meus filhos tentou perceber se era mesmo verdade, olhou-me de lado. que sim, percebeu que sim.

4.

gostamos de fechar o que julgamos importante a sete chaves – expressão que é o sinal da nossa mania das grandezas, uma adaptação do costume da corte afonsina, em que reis e rainhas fechavam a quatro chaves (que cabiam em quatro fechaduras) documentos, jóias e sabe deus o que mais. arredondámos o número, de quatro para sete, quem sabe se o motivo não foi o de convocar seth para que a guarda fosse mais inclemente? a partir daí nunca mais deixámos de o fazer. até as palavras passámos a fechar a sete chaves. rodeamo-las como se servissem mais para esconder do que para mostrar. somos palavrosos por natureza. gostamos de dar voltas no mesmo sítio como se farejássemos uma cauda imaginária. e começamos de crianças – nas escolas, tantas e tantas vezes, premeiam-se os que escrevem muito em prejuízo dos que sintetizam. gostamos de mesas fartas de palavras. exageramos. acredito que por termos algo a esconder, sou optimista. faço-me de interessante, falo muito também. e espero que os outros percebam que o faço por medo que descubram o que tenho escondido a sete chaves.

5.

a mania das grandezas fez os nossos antigos contar sete colinas em lisboa. inventámo-las para que a capital do império português pudesse ser a nova roma que com campidoglio, quirinale, viminale, esquilino, celio, aventino e palatino, fora a rainha de todas cidades conhecidas ou por conhecer. a avó alice, nascida e criada no castelo, não precisa de ver as sete colinas para as olhar dentro de si – ainda a semana passada fechou os olhos e viu-as. nítido é tudo o que quisermos que seja.

6.

caminhamos em duas patas e somos talentosos de outras habilidades não acessíveis a outros animais. de todos os truques, o que mais me comove, mais ainda do que a capacidade de alguns de nós engolirem fogo, é não desgrudarmos do passado e nunca deixarmos de esperar do futuro. extraordinária capacidade, um bicho de sete cabeças para jibóias, cães, gatos, tigres, lampreias e todos os outros companheiros que vivem num presente contínuo. não têm fotografias ou estantes. nem sonhos de grandeza. é o que é. agora. hoje.

7.

não falarei dos pecados, pelo menos não dos sete. mas hoje, assim que daqui sair, pedirei leitão no sete mares. no balcão estará eusébio, se hoje não tiver resolvido ir à adega da tia matilde. não lhe perguntarei por cr7, prometo-vos. à minha frente estará rogério rodrigues, jornalista e um dos meus mestres de vida, um rochedo fechado a sete chaves, um baltasar que vê também nas sombras.

pediremos uma garrafa de vinho sete bagos e falar-lhe-ei do meu segundo casamento, um dos primeiros sem testemunhas realizados em portugal, no dia 7 do 7 de 2007. no cartório trocámos alianças e nesse primeiro dia jurámos superar, quando chegasse o momento, a crise dos sete anos. tínhamos dois bilhetes para o estádio da luz para um espectáculo de celebração das sete maravilhas do mundo, acabámos por não ver nada.

não, não falarei dos pecados, mas o único ídolo que tive, verdadeiro, foi carlos lisboa, o mítico 7 da equipa de basquetebol do benfica, camisola que nunca mais foi usada, o que aplaudo e apoio. seria um sacrilégio. revolveria as minhas entranhas e obrigar-me-ia a convocar seth para colocar todas as coisas de regresso ao seu lugar. deixemos ficar assim. porque o mundo continuará a correr. sete dias por semana. e o sol continuará a existir. este também. daqui a sete anos falamos.