Surrealismo mágico

Com a sua arte e a sua loucura, Luís Osório descreve o sonho como outros descrevem a vida

Se tivesse de lhe colocar uma etiqueta literária, diria que a escrita de Luís Osório é de um “surrealismo mágico” que vai sensorialmente além do que já li de outros autores que têm alguma dimensão de fantasia nas suas obras. É assim que sonhamos, como Luís escreve. Com a sua arte e a sua loucura, ele descreve o sonho como outros descrevem a vida, arrastando-nos para esse mundo de vida não vivida que vivemos diariamente mas que se perde pela fratura entre as nossas consciência e inconsciência. Luís é isso mesmo, um escritor de sonhos, que cria um mundo maravilhoso onde sonho e realidade se misturam sem que percebamos bem onde cada qual começa e acaba.

“Um escritor inventa histórias, especula com as palavras e faz nascer vidas que, antes de as pensar, não existiam. Um tempo difícil para escritores, a maioria exige a carne e o osso, coisas que a televisão torna reais, sangue a sério. Uma ironia. Porque é no tempo em que tudo parece virtual e volátil que se exige que tudo seja implacavelmente real. Ser escritor é não capitular a tal mentira, é recusar escrever a partir da realidade (o lugar em que a verdade melhor se esconde).”

Este é um daqueles que tem de se ler duas vezes de uma só vez, que nos leva a voltarmos ao parágrafo anterior para repetir o prazer sentido ao lermos certas palavras, para as bisarmos, como se não quiséssemos partir delas, como se lê-las sem parar nos bastasse. Mas também que nos faz voltar atrás porque precisamos de as reler para as entender, ou para entender mais delas, para conseguir ler a sua profundidade de sentido, o significado que está debaixo da primeira leitura que delas fizemos. Nessas linhas, parece que o Luís brinca connosco, pondo camadas escondidas por debaixo do óbvio ou do compreensível. E depois de relermos o já lido seguimos, sentindo-nos saciados mas ao mesmo tempo sem sabermos ao certo se lemos tudo o que devíamos ter lido. E eis que somos imediatamente parados por novas palavras que nos assaltam, nos encantam, nos provocam, nos seduzem, nos assustam, nos inquietam e nos fazem querer mais e mais, ao mesmo tempo que não vemos a hora de o descobrir todo. É essa a dimensão de boa literatura, qualquer que seja o target da mesma: fazer com que o leitor, em função do seu grau de capacidade de apreensão do que lê, tenha ânsia de mais, de mais palavras, de mais páginas, de mais histórias. Este é sem dúvida o caso do “A Queda de Um Homem”, que por um lado queremos vorazmente que acabe e, por outro, esperamos que tenha infindáveis linhas, tal é o prazer que temos ao lê-las.

“Gastaram mais palavras no jogo. Ele com vontade de ir sabendo que devia ficar. Ela com vontade que ficasse sabendo que o devia deixar partir.”

É um livro complexo, denso, difícil para um leitor mais mortal como eu, a espaços quase impenetrável, como o são os grandes romances que nos elevam. Luís parece fluir etereamente entre a razão e a insanidade, brincando com a nossa atenção e a nossa compreensão, desafiando-nos a entendê-lo enquanto ele corre à nossa frente disparado, ziguezagueando a um ritmo muito superior ao nosso por ruelas de intelectualidade e genialidade que temos de ir trilhando sem o mesmo mapa do qual ele fez o download à nascença.

“A morte passou a ser ir para dentro, uma noite em que se vai para dentro e o acordar é uma pequena desilusão. Não que a vida não seja esplendorosa de tragédias e oportunidades, mas há sonos que de tão profundos aparentam ser o prenúncio de um outro caminho.”

“A Queda de Um Homem” tem uma história e tantas histórias, é daqueles livros em que cada frase tem muito mais palavras do que as que nela lemos, em que cada página é em si mesma um livro, o que faz com que ele seja infinitamente maior do que as 214 páginas em que foi lavrado. Cabe ao leitor não deixar que essa dimensão tangível de “A Queda de Um Homem” o castre da imensidão que na verdade o livro tem, Lendo-o com L maiúsculo.

“A angústia de não poder ser livre no único lugar onde o poderia ser”

“Acumulava dinheiro e poder, desprezava o dinheiro e o poder”

As histórias que nele lemos são centradas nas personagens, que somos também nós. Todos somos passageiros neste comboio imparável e de difícil controlo que são as nossas vidas, e assim como o homem que caiu, também nós somos várias pessoas, temos pecados e milagres dentro, somos humanos, reais, às vezes negros, outras vezes cheios de luz. Ao lê-lo revemo-nos a espaços e revemos também outras pessoas reais, que conhecemos, sem estar demasiadamente presos na realidade, porque muito do livro é irrealmente real, algo que só os grandes escritores conseguem transmitir com sucesso.

“Personagens sem grande passado e nenhum futuro, gente que se enfartava do que sobra, que vivia na ilusão de ser como ele e que trabalhava em virtude dos caprichos de gente como ele”

Neste livro vemos que é na morte que lemos a nossa vida, que a entendemos de longe, e que é fora de nós mesmos que melhor a avaliamos. E nessa morte viva percebemos tantas vezes que fomos pouco, menos, piores do que podíamos ter sido. O livro do Luís a mim diz-me isso, é como um acordar, violento talvez, para a realidade do que sou e do que não sou, do que fui e do que posso vir a ser, até do que sei que nunca serei. É certo que os livros podem ser abstratos, como a arte, e revelar-se de forma diferente a diferentes pessoas. A mim, este livro, que leio como assumidamente abstrato, fala-me sem voz dessa necessidade de viver, da inevitabilidade da morte, do dust to dust, ashes to ashes, do facto de não sermos nada em vida e de nada irmos ser na morte, de devermos a nós mesmos e aos nossos tentar viver virtuosamente apesar de não sermos perfeitos.

“Tão preocupado com o mundo e tão medíocre fora dele”

“Do que fizeste de negro para que a Terra continuasse a girar à volta do Sol”

Luís escreve também de amor, mas sobre um amor bizarro, poluído, um amor dor, desamor, talvez mais real que os outros dos quais se escreve. Um amor que foi e deixou de ser, que se manchou e se perdeu. Em “A Queda de Um Homem”, o amor é o espelho da luz e sombra dos seus personagens, como o são as suas, as nossas relações familiares e profissionais.

“Os casamentos felizes são os de conveniência”

“A mulher aguardou-o. Soube nessa noite que ele chorara não pela vontade de lhe regressar aos braços mas pela ausência de expetativa de que tal acontecesse”

“Tinha rituais, planos de fuga, pequenas perversidades. Planeava mentiras, assustava-os com a tristeza, pedia-lhes comprimidos e uma morte rápida que não desejava”

Outro lado interessante no livro é o seu lado de quase ensaio político, recheado de mensagens que poderiam fazer parte de programas de governo tanto de ditaduras como de democracias ou mesmo de utopias. Talvez também Luís frequente uma livraria para não se esquecer das suas utopias, como o homem que fez cair.