Transgénero. Estarão os Jogos Olímpicos cada vez mais inclusivos?

Em 2021, o Comité Olímpico Internacional atualizou as suas orientações para atletas trans, definindo princípios sobre a sua possível participação naquele que é o maior evento desportivo do mundo, para decisão das federações internacionais sobre o tema. É por isso possível que os Jogos Olímpicos de 2024 sejam marcados pela inclusão de pessoas transgénero.

Falta pouco mais de 10 meses para que o mundo pare para assistir aos Jogos Olímpicos de 2024. Este ano, a cidade escolhida para receber o evento desportivo mais importante do mundo é Paris. De 26 de julho a 11 de agosto, esta edição, segundo a própria organização, promete quebrar recordes e chega com inovações: como o breakdance e uma inédita igualdade de género entre os atletas convocados – Paris 2024 será a primeira edição dos Jogos da história a alcançar a paridade numérica de género nas competições, com o mesmo número de atletas femininos e masculinos a participarem no evento. 

E os atletas transgénero? Podem participar nas competições? 

Diretrizes mais flexíveis O Comité Olímpico Internacional (COI) anunciou, em 2021, uma nova diretriz para atletas transgéneros – homens que se tornam mulheres, ou vice-versa –, dizendo que “nenhum atleta deve ser excluído da competição por ter uma suposta vantagem por causa do seu género”. Ou seja, as atletas trans não estão obrigadas a reduzirem os níveis de testosterona para competir na categoria feminina. Publicada em novembro desse ano, a diretriz não é legalmente vinculada, deixando assim o caminho livre para a decisão das federações internacionais. Ou seja, a participação do atleta dependerá do que a sua respetiva modalidade estabelece.

A diretiva original do COI foi publicada em novembro de 2021 e entrou em vigor desde março de 2022. Na altura,Yannis Pitsiladis, um dos 38 autores e signatários da declaração dirigida ao COI, salientou que são desejados “padrões formais, baseados na justiça competitiva e na melhor ciência disponível”, reconhecendo o direito das pessoas transgénero de competir. Para ele, esta atualização da COI “sinaliza uma mudança monumental no modus operandi para unir ciência, medicina, justiça e direitos humanos”.

Recorde-se que nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021 (foram adiados um ano devido à pandemia), a halterofilista neozelandesa Laurel Hubbard fez história ao tornar-se a primeira mulher abertamente transgénero a participar num evento olímpico.

A competir enquanto homem, Laurel Hubbard, de 43 anos, teve um início de carreira promissor, estabelecendo recordes nacionais no seu país. Em 2001, afastou-se do halterofilismo devido à pressão que sentia para se integrar na sociedade enquanto pessoa do género masculino. Só no ano de 2012 começou o processo de transição e só em 2017 – 16 anos depois da interrupção –, voltou a competir, já enquanto mulher.

Em 2015, o Comité Olímpico Internacional definiu que qualquer atleta transgénero poderia competir como mulher desde que, nos 12 meses anteriores, os níveis de testosterona não ultrapassassem o limite definido (abaixo de 10 nmol/L). No entanto, a participação de Laurel ficou abaixo das expectativas: a halterofilista não conseguiu levantar a barra em nenhuma das três tentativas — a primeira com 120 e as duas seguintes com 125 kg –, acabando eliminada. 

Integridade nas competições Segundo João Paulo Almeida, o que está aqui em causa, é o seguinte: “O desporto, em qualquer modalidade, está organizado em género – competições masculinas e competições femininas –, e está organizado, em algumas modalidades, em categorias de peso. Quando olhamos para isto, perguntamos: ‘Porque é que isto é assim?’. A resposta mais evidente é: ‘Para assegurar aquilo que se chama ‘integridade das competições’… Que tem várias nuances: uma delas é garantir que haja o mínimo de condições de igualdade à partida para cada um dos competidores”, explica o diretor geral do Comité Olímpico Nacional. “Porque é que há categorias no boxe ou no judo? Um atleta, independentemente do género, com 50 quilos, se fosse competir com um outro, de 100, essas competições não seriam equilibradas, estariam comprometidas. Acho que qualquer pessoa o percebe”, continua.

De acordo com João Paulo Almeida, isto está de alguma forma cientificamente estudado e analisado: “Nas modalidades que exigem mais capacidades físicas, de resistência, de força, etc. a performance do homem é melhor do que a da mulher. Noutras, a performance da mulher é melhor do que a do homem. Falo, por exemplo, da ginástica, da ginástica rítmica, da ginástica acrobática, natação sincronizada”, exemplifica, alertando que a questão das pessoas trangéneros acabou por colocar um “dilema”. “Um dilema entre um princípio essencial/ básico do desporto, que é o ‘acesso à prática desportiva e não descriminação’, com este pilar de ‘salvaguardar a integridade das competições’, salvaguardar as condições iguais, à partida, dos competidores”, reforça.

Poder-se-ia também dar o exemplo da nadadora americana Lia Thomas, que competiu na equipa feminina de natação da Universidade da Pensilvânia de 2021 a 2022 e tornou-se a primeira atleta abertamente transgénero a vencer um campeonato nacional da Divisão I da NCAA. “Ela quando competia como homem tinha resultados que ficavam aquém e, depois da mudança, começou a ganhar e a ter resultados que a colocam nos primeiros lugares. Isso levantou, até dentro do meio das atletas femininas, uma polémica enorme… A integridade das competições estava, segundo elas, comprometida, em causa”, frisa o responsável. 

Interrogado sobre como é que do ponto de vista institucional, as entidades desportivas, a começar pelo Comité Olímpico Internacional, passando pelas federações internacionais, estão a gerir esta situação, o diretor-geral do Comité Olímpico de Portugal acredita que “da mesma forma que estão a gerir a participação ou não dos atletas russos e bielorrussos nos jogos”. “No fundo, as federações foram tomando posições, uma mais radicais, outras mais flexíveis. Ou seja, umas, como a de Atletismo, tomaram uma posição mais rígida, defendendo que as pessoas trans não teriam lugar se não fizessem uma supressão de testosterona, tivessem que ficar com níveis iguais aos de uma mulher e fossem objeto de um acompanhamento médico. Outras, flexibilizaram mais o processo, numa lógica de ir acompanhando aquilo que é o desenvolvimento desportivo desses atletas transgénero. Ver com a parte médica os níveis de testosterona e, depois, caso a caso, fazerem uma análise no sentido de poderem ou não admitir esses atletas nas competições femininas”, explica.

A questão mais sensível tem a ver com as modalidades onde realmente essas competências são determinantes, como o atletismo ou a natação. “Aqui o que o COI diz é que não deve haver aqui uma regra fechada, deve ser analisado caso a caso. Não quer fazer como algumas federações que dizem que só baixando o nível da unidade de medida da testosterona, é que podem participar. Tem de ser avaliada a performance desportiva de alguma forma, se isso não desequilibrar a competição, deve ser aceite”. E lembra que a atleta neozelandesa, que toda a gente achava que ia ganhar facilmente a competição, não ganhou. 

Uma questão de inclusão No entanto, há casos em que isso acaba por acontecer. Segundo o jornal New York Post, a 25 de março deste ano, na competição Heroes Classic 2023, em Alberta, nos EUA, o treinador de halterofilismo do Canadá decidiu protestar contra as normas da organização da prova, que permitia aos participantes inscreverem-se nas competições de acordo com a “identidade e expressão de género com que se identificam, em vez do sexo ou género”, e decidiu inscrever-se na categoria feminina. Avi Silverberg acha esta possibilidade um “absurdo” e entende que a competição feminina deve ser “vetada” a atletas trans, por não considerar justo que “pessoas que nascem homens, com uma genética de homem, possam competir contra mulheres”.

Silverberg levantou cerca de 167 quilos, superando largamente o anterior recorde de 124 quilos, que pertencia à atleta transgénero Anne Andres, que considerou a participação de Avi como “cobarde e intolerante”, levada a cabo com uma “intenção maliciosa”.

“Nós sabemos que os tratamentos de testosterona e tudo o que se possa fazer com critérios científicos não vai mudar assim de repente as coisas” complementa o diretor-geral no Comité Olímpico de Portugal. “O músculo tem um processo de aprendizagem, não é por uma pessoa mudar de sexo e passar por um tratamento de supressão de testosterona que levará o músculo a perder a memória do seu gesto motor e até a sua capacidade física e de forma”.
E conclui: “Isto é preocupante porque gera um desequilíbrio competitivo em modalidades onde as questões fisio musculoesqueléticas são absolutamente determinantes”. 

Para Miguel Saraiva, membro da equipa de Endocrinologia da Unidade de Sexologia e Género (USEG) do Centro Hospitalar Universitário do Porto, a fisionomia é um dos aspetos que “mais tem sido utilizado como justificação para a não inclusão”. “Na verdade, o nosso ambiente hormonal, e sobretudo se sofremos um processo de puberdade masculinizante e feminizante, tem implicações sobre várias áreas”, começa por explicar. No que toca à performance desportiva, segundo o especialista, interessa-nos essencialmente focar o que acontece com “quantidade de hemoglobina circulante (células vermelhas, que transportam o oxigénio)” e com a “massa muscular”. A testosterona faz aumentar o número de células vermelhas e aumentar a massa muscular, podendo “potencialmente melhorar a performance desportiva”. “O que está bem documentado sobre melhores trans que estão sob terapêutica hormonal de afirmação de género (induzindo redução da testosterona e aumento do estrogénio) é que os níveis de hemoglobina ficam sobreponíveis aos de mulheres cisgénero após 3-6 meses de exposição à terapêutica hormonal”, detalha Miguel Saraiva. “A principal dúvida reside na questão da massa muscular: é sabido que a massa muscular tende a reduzir com a exposição a terapêutica hormonal feminizante mas alguns estudos têm mostrado que apesar de essa massa muscular reduzir ela fica, em média, superior à das mulheres cisgénero, o que poderá constituir uma eventual vantagem competitiva. Contudo, importa que reflitamos sobre a evidência que nos é exposta: qual a metodologia destes artigos? A comparação foi feita entre mulheres trans atletas e mulheres cis atletas? Ou mulheres trans atletas e mulheres cis não atletas?”, interroga, acrescentando que “não podemos descurar a importância do treino físico regular na estimulação da criação de massa magra”. Mais importante que isto, frisa o endocrinologista, importa perceber o porquê de estarmos tão preocupados com a eventual vantagem competitiva de mulheres trans. “Outro tipo de diversidades na espécie humana também se traduzem em eventuais vantagens competitivas (por exemplo, há regiões do mundo em que as pessoas são substancialmente mais altas, etnias que se associam a menos tendência de acumulação de massa gorda, etc). O facto de crescermos e vivermos num país ‘rico’ também nos oferece mais possibilidades de treino especializado desde cedo, por exemplo”, afirma. “Parece-nos impensável excluir atletas da alta competição por questões raciais ou financeiras… Por que é que o queremos fazer com as pessoas trans? Existem precisamente artigos de revisão a concluir que a vantagem atlética teórica das mulheres trans não parece ser superior do que vantagens fisiológicas ou financeiras universalmente aceites”, garante.