4. Lá vai o alemão

Dobramos a Rua de Artilharia 1 na esquina da Joaquim António de Aguiar e dirigimo-nos ao Marquês de Pombal. Do centro da praça, os olhos alcançam, para cima, o topo do Parque Eduardo VII e, para baixo, o Tejo: esta é, por excelência, a grande panorâmica da revolução. Os pés amotinam-se e optamos por fazer…

da plataforma subterrânea ao largo de são domingos é um pulo. junto à lateral direita do teatro d. maria ii, lá está ele, em todo o seu esplendor seiscentista: o palácio da independência, sede da sociedade histórica da independência de portugal e, em 1910, centro nevrálgico da defesa monárquica. aqui acorreu, pouco antes das sete da manhã de 5 de outubro, o novo encarregado de negócios da alemanha. hóspede no vizinho avenida palace havia apenas dois dias, o barão von schmidthals arvorou-se porta-voz de todos os forasteiros em perigo de vida, foi à procura do comandante monárquico e pediu-lhe uma hora de trégua para os evacuar. o general gorjão henriques anuiu, na condição de o diplomata empreender a mesma iniciativa junto dos republicanos na rotunda. com sorte, talvez assim ganhasse o tempo suficiente para chegarem da província os reforços que há tanto esperava.

escoltado por um pequeno séquito a cavalo, que exibia a necessária bandeira branca, o alemão lá arrancou avenida acima. o povo, julgando tratar-se da rendição da monarquia, irrompeu num coro de vivas à república, confraternizou com os soldados, distribuiu abraços sem olhar a quem. se o combate era para con tinuar, não se notava. já na rotunda, ao ser-lhe negada a trégua, o kaiseriano diplomata esgrimiu argumentos de civismo e humanidade, insinuou que, se preciso fosse, o governo alemão seria chamado a intervir. mais por sentido táctico do que por condescendência, machado santos acedeu. assinou um armistício válido das oito e 45 às nove e 45, fez substituir a escolta do barão por dois homens da sua confiança e mandou-os descer, com o papel rubricado, ao largo de s. domingos. às oito e 35, ele próprio iniciou a cavalo o mesmo trajecto. ao descer, poderá ter reparado, à sua esquerda, nos escombros do prédio que ocupava a esquina da avenida da liberdade com a rua alexandre herculano. o edifício fora consumido pelas chamas porque os monárquicos, para manterem visão nocturna sobre o acampamento da rotunda, impediram o acesso dos bombeiros ao local quando uma granada ateou fogo ao telhado.

mais abaixo, a meio da descida, uma massa de populares arrancou santos de cima do cavalo e fê-lo chegar em ombros ao palácio da independência, onde nada mais havia a fazer senão admitir a derrota. o desembarque dos marinheiros revoltosos no terreiro do paço estava iminente. na véspera, tinham feito o s. rafael e o adamastor cuspir granadas que, com precisão cirúrgica, troaram pela rua do ouro sem causar danos, explodindo em campo aberto no rossio. a pontaria era tal que se conta até que um marujo fez uma aposta com outro em como era capaz de, a partir do tejo, mandar abaixo o mastro da bandeira no palácio das necessidades – e ganhou. não admira que o rei tivesse, pelo meio-dia, saído de lá para se refugiar em mafra (na tarde de 5 de outubro, na ericeira, a família real embarcaria no iate d. amélia rumo a gibraltar, antecâmara do definitivo exílio inglês).

num último teste de resistência física, deixamos para trás o rossio e seguimos até à praça do comércio para outra panorâmica e uma merecida pausa. daqui até à praça do município, derradeira paragem do nosso roteiro, são favas contadas. um pé à frente do outro e, num instante, estamos defronte da varanda dos paços do concelho, a partir da qual josé relvas proclamou oficialmente a república perante uma multidão em êxtase. eram nove da manhã de 5 de outubro de 1910 – já as bandeiras republicanas tinham irrompido como cogumelos um pouco por toda a cidade. eis-nos chegados ao epílogo de uma aventura feita de extremos: estratégia e acaso, inteligência e loucura, drama e comédia. tanta coisa e, no fim de contas, como escreveu raul brandão, «bastou o estrondo para desabar o trono». o nosso passeio acaba aqui, onde esperamos que comece o do leitor. passe, cidadão!

vladimiro.nunes@sol.pt