As vidas dos outros

Aos poucos, foi-se instalando uma intrigante convicção na televisão portuguesa de que não há programa diário que possa sobreviver sem uma rubrica dedicada ‘ao social’.

mais mulher, estreado há dois meses na sic mulher, não fugiu a essa perniciosa regra e lá recebe em estúdio, semanalmente, uma luminária para se pronunciar sobre as revistas e o mundo cor-de-rosa, pretendendo fazer desta coscuvilhice pura uma análise séria ao nível do comentário político. mas não passa de conversa de café, ainda por cima em segunda mão.

um olhar atento sobre os programas da manhã confirma esta má tendência. algo que só seria compreensível se o tom fosse carnavalesco, encaixa que nem uma luva no tom ‘leve’ que hoje se quer para tudo – assuntos da esfera privada, de tão grande vulgaridade como acontecimentos quanto a vulgaridade com que são tratados. a diferença reside apenas nos ares de importância a que este circo de frivolidades se dá. o você na tv!, que ocupa as manhãs da tvi, vê-se na necessidade de convocar um painel de três comentadores (!) para melhor espiolhar as vidas alheias – do estado do casamento de rui costa aos locais paradisíacos onde alguns pensam passar o natal, tudo passa por este escrutínio gratuito.

a sic promove a coisa ao exagero e dedica uma hora diária aos fait-divers em ‘capa de revista’. há uma semana a dupla que apresenta a rubrica no companhia das manhãs debatia desbragadamente o facto de cristiano ronaldo ter dedicado um golo ao filho presente no estádio. num rebate de consciência, a apresentadora encontrou a sentença perfeita: «ele, desgraçado, está sempre a ser alvo da análise dos ‘cláudios ramos’ e das ‘anas marques’ desta vida, em que tudo tem de ser alvo de um comentário». nem mais. agora só falta aplicar a mesma clarividência ao resto do programa.