Jovens alemães ‘clandestinos’ em Portugal

Nos últimos anos, centenas de jovens problemáticos foram mandados para Portugal sem as autoridades saberem. O MP fez um inquérito e encontrou casos bons e outros de grave negligência.

na grande mesa rectangular da sala, justine hasse dispõe dossiês com conteúdos de várias disciplinas. são para a jovem julia, de quem é tutora: todas as manhãs, às oito horas, esta vai de bicicleta até ao caminho de alcatrão mais próximo e depois volta: «são 15 minutos para cada lado. tento que faça de conta que é o caminho até à escola, só que a professora sou eu e aula é dada aqui. serve para fazer exercício e habitua o cérebro a regras e rotinas que nunca teve».

a casa de justine fica entre cerros, perto de moncaparacho, no concelho de olhão. julia wider faz 15 anos em maio e está há dois em portugal: é uma das centenas de jovens que a alemanha enviou nos últimos 20 anos para outros países (da europa e não só), cumprindo um programa especial de educação e reinserção social com famílias de acolhimento que são pagas exclusivamente para isso. o programa é classificado como o último recurso para os chamados ‘jovens sem solução’ – mas tem sido muito criticado, inclusive na alemanha, havendo quem considere tratar-se de uma verdadeira deportação. em muitos casos, os jovens são mantidos à força nos programas, por tempo indeterminado e em condições degradantes.

mp abriu inquérito

só no sul de portugal, foram encontrados pelo ministério público (mp) e pela segurança social, em 2009, 129 jovens que estavam completamente ‘clandestinos’ – pois o estado alemão nunca informou como devia as autoridades nacionais, o que está a ser uma fonte de problemas diplomáticos. as queixas que começaram a surgir envolvendo alguns destes jovens – alcoolismo, droga, fugas de casa e até actos violentos para com os tutores – levaram o mp a abrir um inquérito exaustivo para averiguar a sua situação jurídica e a forma como são tratados pelas famílias.

julia é um dos casos. na alemanha, sofreu na pele a convivência com um pai alcoólico, depois os desentendimentos entre a mãe e o padrasto. fugiu várias vezes de casa e chegou a estar numa clínica psiquiátrica. «ela começou por ser uma criança que tudo fazia para agradar a mãe. nas fotografias aparece sempre bem vestida, como uma boneca, e tinha boas notas, até que, aos 11 anos, mudou radicalmente. fugia de casa, da escola e de qualquer regra» – conta a tutora, justina. confessa que o mais difícil tem sido ajudá-la a aceitar as normas da sociedade e da sua família: justina, o marido otto e quatro filhos com 6, 12, 15 e 16 anos.

«todos os dias tento descobrir a personalidade de julia, ela é como um puzzle, ando sempre à procura de peças que possa encaixar. estou 24 horas de serviço», explica com um sorriso.

por estes dias a gripe tem tomado conta da família. quando aparece na sala, julia tem o cabelo louro desgrenhado e «não está vestida e maquilhada como ela gosta de andar», elucida justina. abraçam-se para uma fotografia, vê-se que há respeito e proximidade entre ambas. «mas há sete semanas que estou mais fria com ela», admite justina, explicando que «ela fugiu de casa outra vez».

durante algum tempo, a jovem escapava à noite e, como voltava sempre antes do pequeno-almoço, ninguém dava por nada, até que um dia foi descoberta. julia esboça um sorriso, diz apenas que ia encontrar-se com amigos na fuzeta. fala alemão e um pouco de inglês, por isso não entende quando justina conta, em português: «ela disse-me que não consegue controlar o impulso, é como se uma droga tomasse conta dela, e tem que fugir».

a família hasse foi recrutada pelo iaprs (instituto algarve projecto reabilitação social), uma das duas únicas associações privadas (entre 15 identificadas) que o mp e a segurança social consideraram idóneas para prosseguir esta actividade em portugal. «em cada dez jovens, oito têm sucesso escolar» e na aquisição de competências sociais que lhes permitam regressar ao seu país e integrarem-se, garante ralph dohlem, director pedagógico do iaprs. à associação compete seleccionar famílias para receber crianças e depois monitorizar a evolução, tanto dos cuidadores, como dos menores.

mas os alemães queixam-se que portugal está a colocar demasiados obstáculos burocráticos à sua actividade. na sequência do inquérito do mp, a iaprs suspendeu desde 2009 a recepção de mais crianças, enquanto não obtém o estatuto de ipss (instituição particular de solidariedade social). mas o pedido continua pendente na segurança social e o iaprs vai avançar para o tribunal administrativo (reclamando ser indemnizado pelos danos sofridos) e o tribunal europeu dos direitos do homem.

fechar os olhos

do lado de cá, as autoridades salientam que portugal é que tem razões de queixa, pois teve de legalizar no último ano e meio uma situação ‘clandestina’ face ao regulamento europeu sobre menores.

a verdade é que há muito que se sabia deste programa alemão, mas foi-se fechando os olhos. já tinha havido casos complicados de negligência de menores nos anos 90, por exemplo, então relatados na imprensa. até que as coisas se complicaram.

o processo do mp foi accionado no tribunal de família de faro, pelo caso de cindy e jezeline. na noite de 8 de julho de 2009, a gnr deu o alerta: duas adolescentes estavam numa passagem pedonal sobre a via do infante, na zona do areeiro (loulé), com cervejas na mão e já do lado de lá das grades, em risco de caírem a qualquer momento. os militares foram buscá-las e, além dos sinais de embriaguez, verificaram que as jovens sangravam dos braços, resultado de automutilações, e que havia mortalhas de haxixe no chão. quando foram levá-las a casa, as coisas pioraram: o casal alemão que tinha a sua tutela não estava, e cindy e jezeline, de 13 anos, viviam num «anexo exterior» da casa, «imundo e desarrumado».

o mp questionou então a gnr e a psp sobre se já se tinham deparado com mais situações do mesmo tipo. só num dia, a gnr de olhão comunicou mais cinco situações e uma semana depois reportou mais uma: um casal alemão pedira ajuda por estar a ser ameaçado por um menor com uma faca. noutro caso, uma adolescente tinha fugido à família de acolhimento e apareceu a fazer uma queixa de tentativa de violação por um cidadão alemão, que depois se suicidou.

o mp, a quem a lei atribui o dever de protecção dos menores, abriu então um inquérito: «todos estes casos reconduziam-se a situações de menores em perigo ou risco. foi-me referido que só no sotavento algarvio poderiam existir cerca de cem jovens nestas situações» (entregues a famílias de acolhimento da mesma nacionalidade) – escreveu o procurador carlos pereira, num despacho de junho de 2009. questionada, a segurança social informou que tinha feito já relatórios à tutela sobre o assunto.

«estas famílias vivem em zonas isoladas em moradias (…). mostram grande relutância e adoptam tácticas evasivas quando abordadas por autoridades portuguesas» e «não possuem ou não disponibilizam documentação que legitime a presença das crianças no seu agregado» – salientava ainda o magistrado, que, dada a gravidade dos casos, reportou a situação a nível hierárquico à procuradoria distrital de évora.

investigação exaustiva

o assunto chegou ao procurador-geral da república, que deu luz verde ao programa de intervenção delineado: a partir dos menores já conhecidos, fazer um levantamento das respectivas famílias e associações para quem trabalhavam. e saber se estas estavam devidamente legalizadas, apurar quantos menores tinham à sua guarda e em que condições, bem como exigir as decisões oficiais alemãs que as tinham enviado para portugal.

com a ajuda da segurança social e das comissões locais de protecção de menores, foram encontradas 15 associações, cerca de 200 famílias e 129 menores. isto após o mp ter feito reuniões alargadas, com responsáveis da segurança social, do sef, da psp, da gnr, das finanças e das comissões de protecção de menores. só duas das associações foram consideradas idóneas, algumas encerraram e muitos jovens voltaram à alemanha.

as entrevistas feitas pelas comissões de menores e pelos serviços regionais de segurança social revelaram boas situações (jovens problemáticos, mas bem acompanhados), mas também histórias de arrepiar. havia jovens que tinham, inclusivamente, deficiências cognitivas, o que, segundo a própria lei alemã devia ter impedido a sua inserção neste tipo de programa.

noutros casos, a estada de menores enviados para o algarve foi deliberadamente prolongada pelas famílias de acolhimento, que viam neles um rendimento mensal. alguns dos jovens denunciavam ainda condições de vida degradantes.

a polémica medida alemã que está em causa dá pelo nome oficial de «programa individual intensivo sócio-pedagógico». no ano passado, dois professores catedráticos alemães divulgaram um relatório muito crítico, que constituiu a primeira avaliação do programa. há duas semanas, partindo desse estudo, uma reportagem do canal alemão zdf criticava duramente o facto de o estado não fiscalizar as condições em que vivem estes jovens e mostrava como o programa tem resultado num negócio para muitas famílias – exemplificando com casos no algarve.

por cada criança, o estado alemão paga cerca de 4600 euros às associações privadas que têm de recrutar, seleccionar e acompanhar as famílias. estas recebem entre 2000 e 3000 mil euros por criança. são valores altos, mas compensadores para o estado alemão, uma vez que o internamento em colégios sai ainda mais caro.

 

paula.azevedo@sol.pt

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