Teresa Caeiro: ‘O dinheiro para os alfinetes tinha que ganhá-lo eu’

O concerto de Simon and Garfunkel no Central Park é um dos discos da sua vida. Sonhava ser astronauta, mas trabalhou como ardina para ganhar os primeiros trocos. A vice-presidente do CDS e da Assembleia da República diz que a fé é uma dádiva e gosta do casulo que consegue criar à noite.

em casa falavam de política?

não posso dizer que, na minha casa nuclear, se falasse muito de política. falava-se de política com os meus avós e na família mais alargada. mas não era daquelas famílias em que havia grandes debates políticos e ideológicos, até porque havia pessoas dos dois lados. por um lado, havia a família da minha mãe. tinham construído o estoril e eram pessoas bem acomodadas com o antigo regime. por outro lado, da parte do meu pai, tinha o meu tio mário cesariny, que chegou a ser expulso do país.

teve sempre uma relação próxima com o seu tio-avô?

sobretudo quando voltei da bélgica. antes era muito pequena e dá-me ideia de que ele também não deveria achar muita graça a crianças pequeninas a babarem-se, aos gritos e sem nada para dizer. mas depois, sim. claro que tenho pena de não termos passado ainda mais tempo juntos. quanto mais alguém estava com ele, mais vontade tinha de estar.

ele gostava desse contacto com as pessoas?
quando se sentia à vontade, sim. chamava-me ‘a minha gata’ e eu aninhava-me nele. tenho recordações muito boas. lembro-me de uma vez que estava em casa dele, já eram talvez duas da manhã, e ele disse: ‘vamos à expo’. e fomos passear para os relvados da parte mais oriental. depois sentámo-nos num banco. não havia vivalma.

sentaram-se a falar da vida?
e calados. muitas vezes também estávamos calados. não vejo que haja necessidade de as pessoas estarem sempre a conversar. eu preciso muito do silêncio. só o silêncio nos dá a possibilidade de arrumar ideias. lá voltamos ao tal casulo nocturno.

viveu em bruxelas dos nove anos até ao final da adolescência. ficou muito ligada à bélgica?
é inevitável ficarmos ligados ao sítio onde crescemos. e a bélgica é um sítio muito agradável para viver. tem uma grande oferta cultural, está próxima de tudo e é muito cosmopolita. é raro, na bélgica, haver pessoas de uma só nacionalidade à mesma mesa. isso dá-nos uma dimensão do que é a europa e o mundo.

nas férias vinha a portugal?
sempre.

tinha aquela saudade do emigrante?
não muito. mas custou-me na altura em que fui, por causa da mudança de país, de língua, de amigos. de qualquer forma, estava numa idade em que a capacidade de adaptação é muito grande.

quando foi já sabia falar francês?
não.

e tocar piano?
[risos] também não. e consegui que a minha professora, uma virtuosa argentina, tivesse quase um esgotamento por minha causa.

quando começou a ter aulas de piano?
já na bélgica. todas as juntas de freguesia, a partir das cinco da tarde, tinham actividades culturais, como música, ballet, solfejo… e aquilo é levado muito a sério. para poder começar a aprender piano tive de fazer quatro anos de solfejo.

queria mesmo aprender ou a vontade era dos seus pais?
no caso do piano, era eu que queria. eles, coitados, viram-se gregos para arranjar um piano e içá-lo para dentro de casa. e depois eu tinha vergonha de ensaiar e não queria que os vizinhos passassem a vida a ouvir aquela cacofonia. claro que quando chegava às aulas, não sabia nada. e também percebi que não sou nenhum mozart.

foi difícil a aprendizagem do francês?
quando cheguei à bélgica fui despejada na escola alemã. e em portugal tinha andado num colégio inglês. os meus pais queriam que eu aprendesse outras línguas, mas na bélgica a escola alemã é só para alemães. o director ficou assustado quando soube que eu não falava alemão. mas fizeram um acordo para eu ficar à experiência durante seis meses e acabei por aprender.

ao mesmo tempo ia aprendendo francês…
sim. na rua, na televisão.

era muito betinha?
acho que não.

rebelde?
também não. queria autonomizar-me rapidamente. isso sim.

e tinha um projecto de vida? sabia o que queria fazer
sempre sonhei com arquitectura. mas, por outro lado, quando pensava em abstracto no direito também achava interessante. acabei por optar por direito.

no início da adolescência, direito era algo que lhe passasse pela cabeça?
só mais tarde. na infância quis ser astronauta, florista, bailarina… mas astronauta era um pensamento mais persistente. sempre achei fascinante o que nos rodeia. como é que tudo isto surgiu? e lembro-me sempre de uma frase do benjamin franklin, que é qualquer coisa como: ‘pensar num universo sem deus é como pensar que uma enciclopédia é o resultado de uma explosão numa tipografia’. é possível que estivesse a ser cínico, mas gosto muito da frase.

para si faz sentido a ideia de um universo sem deus?
acho dificilmente concebível.

tem fé?
tenho. acho que a fé é um dom, uma dádiva. as pessoas que interiorizam a fé de modo a poderem lidar bem com a morte e com a desgraça são pessoas bafejadas por um dom. claro que às vezes questiono-me sobre a lógica de inocentes serem vítimas ao mesmo tempo que pessoas que são más acabam por se safar. se calhar falta-me dar um passo seguinte na fé. mas adoro o cristianismo. quando atacada, a resposta da igreja católica é sempre a da tolerância e do perdão. e a capacidade de perdão é talvez a qualidade que mais admiro no ser humano.

reza todos os dias?
sim, quase diariamente. sobretudo para agradecer. um dos defeitos que acho menos aceitáveis, sobretudo no nosso mundo privilegiado, é a falta de gratidão. nós temos uma enorme dívida de gratidão por tudo o que temos. principalmente se pensarmos que grande parte da população não tem sequer direito a escolha.

na adolescência já tinha consciência política?
consciência político-partidária, não. mas – por força da minha educação em casa e na escola – sempre me foi incutida a noção de que devemos devolver qualquer coisa à sociedade. sempre tive a noção de que cada direito implicava um dever, que cada privilégio implica uma obrigação acrescida. embora não tivesse consciência partidária, não acho que estas noções fossem irrelevantes politicamente.

não sentia a política na bélgica?
a bélgica é uma monarquia e, mesmo agora, sem governo, é um país pacífico e tranquilo. na altura em que lá vivi, era o oposto de portugal, que nessa época estava ultra-politizado. nas férias, vinha da bélgica, onde não se falava de política, e chegava a portugal onde os miúdos da minha idade andavam todos com crachás de um partido ou de outro. cresci num ambiente muito pouco partidarizado, enquanto portugal estava a viver os seus primeiros momentos de liberdade. tenho pena de não ter acompanhado isso, confesso, mas, por outro lado, acho que ainda hoje, como país, estamos a pagar alguns enquistamentos ideológicos que ficaram dessa época.

que tipo de enquistamentos?
enquistamentos que considero obsoletos, como a oposição entre esquerda e direita. aquela ideia típica de ‘a esquerda é que tem preocupações sociais’. esse discurso é obsoleto e demonstra imaturidade democrática. é um pensamento completamente anacrónico e leva ainda a que muitas atitudes sejam tomadas em função desse maniqueísmo.

são outras coisas que distinguem esquerda e direita, ou já não existe uma esquerda e uma direita?
obviamente que há distinções ideológicas. a direita – e por isso é que sou de direita – preservará sempre mais a questão da igualdade de oportunidades versus o igualitarismo, que é mais algo de esquerda. a direita, tal como eu a vejo, entende que cabe ao estado criar condições para que as pessoas partam de um ponto de partida tão igual quanto possível. cabe ao estado gerar igualdade de oportunidades.

mas a esquerda também entende que todos devem partir do mesmo sítio e que deve haver igualdade de oportunidades.
mas a direita, a partir do momento em que cria essa igualdade de oportunidades, privilegia muito mais o mérito, o esforço e o trabalho do que a esquerda. hoje talvez seja essa a grande diferença. a partir do momento em que o estado cumpre esse papel equalizador das circunstâncias, quem trabalha mais deve ser mais remunerado. daí a eterna questão dos impostos. os impostos têm de ser redistributivos, mas não podem ser castigadores para quem cria riqueza e quem trabalha mais. a esquerda tem uma propensão para o igualitarismo e a direita tem uma propensão para a igualdade de oportunidades. a direita – e eu concordo com isso – preza os valores do trabalho, do esforço, do mérito e do empenho.

também há muita tendência para distinguir direita e esquerda através das questões ditas fracturantes.
sim, mas para esse peditório eu já dei.

mas essas questões têm alguma coisa que ver com direita e esquerda?
de que questões estamos a falar?

das tradicionais: aborto e casamento gay, por exemplo.
as questões fracturantes assumiram um papel desproporcionado em portugal. qualquer casal – gay ou não gay – tem as mesmas preocupações: a conta da electricidade, os impostos, o acesso à saúde, à cultura, à educação. essas é que são as questões importantes. estou à vontade para dizer isto porque são conhecidas as minhas posições relativamente a essas questões fracturantes. é um lugar-comum, mas entendo que as pessoas, se não prejudicam ninguém, têm todo o direito de procurar a sua felicidade individual e o estado deve ser neutro em relação às suas decisões individuais e sentimentais.

mas aí afasta-se do que pensa, em teoria, a direita tradicional…
não sei o que é a direita tradicional. tenho muitos amigos de direita que pensam exactamente como eu. voltamos à mesma questão: em portugal ainda há um grande anacronismo na forma como se vê a esquerda e a direita. fruto do prec e de quem tomou de assalto a educação, desde o 25 de abril educámos gerações levando-as a acreditar em princípios que são errados do ponto de vista da ciência política. a direita não tem menos preocupações sociais do que a esquerda.

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jose.fialho@sol.pt