E Madrid aqui tão perto

Aforma como os governos de Lisboa e de Madrid – apesar de os partidos que os sustentam se integrarem na mesma família política europeia – se têm relacionado com a crise não podia ser mais díspar.

enquanto lisboa exagera na receita, aumentando a dose dos tratamentos prescritos, madrid, consciente do fortíssimo impacto social e económico de prescrições iguais para todos os doentes, apesar da sua diferente condição de base, resistiu, resistiu, resistiu… e tanto resistiu que conseguiu modificar a receita que lhe foi aplicada, cingindo-a ao sistema financeiro, transmitindo politicamente à população a mensagem de que seria poupada àquilo que a receita tradicional lhe exigiria.

é certo que a portugal – e para isso chamou a atenção o presidente da república – interessa que a situação da banca em espanha não se deteriore. mas também é certo que o partido socialista andou bem, pela voz do seu secretário-geral, ao exigir conhecer as condições em que o resgate foi concedido à banca espanhola, uma vez que o governo português, apesar de ter participado nessa decisão, foi completamente omisso nas informações que deu sobre as condições da concessão do resgate à banca espanhola.

decisões deste tipo têm de ser tomadas com toda a transparência e os seus fundamentos devem ser do conhecimento do público, até porque é este, em última análise, quem sustenta, através dos impostos, o impacto dessas decisões.

além disso, constituindo um pressuposto base da união europeia a igualdade entre os estados que a integram, é indispensável verificar se foi dado igual tratamento a situações equiparáveis ou se, ao contrário, uns são filhos e outros enteados.

é, claramente, evidente que o actual governo sempre pretendeu, por razões ideológicas, o tratamento de choque que o programa da troika representa e, por isso, lhe acrescentou mais medidas, ainda mais gravosas. mas as consequências são tão dramáticas do ponto de vista social e económico – não esquecer as previsões da ocde para o nosso país, divulgadas esta semana – que são cada vez mais as vozes, mesmo dentro da área política da maioria, que se pronunciam no sentido da indispensabilidade de medidas dirigidas para o crescimento económico e de mais tempo para a consolidação das contas públicas. afinal, aquilo que em portugal o ps diz, repetidamente, desde 2011 e, em espanha, rajoy reclama desde que iniciou funções.

níveis elevadíssimos de desemprego, emprego cada vez mais precário, falências em massa, mensagem de temor e insegurança podem ser usadas para a criação de ambiente facilitador das grandes mudanças que se pretendem, sem nunca o confessar.

mas as fracturas sociais daí decorrentes envolvem riscos incalculáveis, tanto do ponto de vista dos indivíduos, como do estado. assim ensina ulrich beck, criador do conceitos da ‘sociedade do risco’. e para isso nos alertou sampaio da nóvoa na sua magnifica alocução nas cerimónias do 10 de junho.

em estados civilizados modernos, invocar a caridade e apelar ao sentimento de compaixão não é aceitável como forma normal de apoio aos mais frágeis e aos mais injustiçados, porque foi para isso que se desenharam as políticas sociais públicas.

e também não o é aceitável para a igreja moderna. como o concílio vaticano ii afirmava «não se ofereça como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça»!

ponhamos, pois, o nosso talento e a nossa sensibilidade ao serviço não só daquilo que é razoável mas, sobretudo, ao serviço do que é justo. coisas simples e básicas, às quais apelava sampaio da nóvoa na sua já citada alocução.

são estes, aliás, os meus votos para o próximo conselho europeu.

*jurista e política