Ao contrário do que se ensina nas escolas e constitui doutrina oficial, na origem do derrube do Estado Novo não esteve a vontade dos militares de acabarem com a guerra e de implementarem um regime democrático, mas sim razões estritamente corporativistas.
A intenção de o governo de então em oferecer aos oficiais milicianos praticamente as mesmas condições inerentes aos oficiais provenientes da Academia Militar, gerou uma revolta no seio destes últimos, que se organizaram num movimento de contestação ao poder perante o qual respondiam, acção esta que resultou numa insubordinação militar e cujo desfecho conduziu à queda do regime saído da Constituição de 1933.
O poder emergente em Abril de 1974, temendo a eventualidade de cair de igual forma ao que o antecedeu, tem-se entretido em esvaziar as Forças Armadas de qualquer capacidade bélica entre fronteiras, retirando-lhe os meios humanos e materiais fundamentais para o cumprimento das missões que lhe são atribuídas.
Hoje, a Instituição Militar está ferida de morte, não passando de uma pálida sombra da que outrora granjeara o respeito e admiração de todas as suas congéneres espalhadas por esse mundo fora.
No entanto, os políticos de Abril não tiveram em atenção um pormenor de sublime importância, a de que a força das armas transitou das Forças Armadas para as forças de segurança, estas sim indispensáveis para o garante do estado de direito e de uma sã convivência em comunidade.
Ao longo dos tempos foram descurando a sua relevância, por acreditarem que a sua natureza fortemente hierárquica serviria de tampão a qualquer veleidade de desobediência ao poder vigente, ignorando as legítimas aspirações de todos quantos servem na Guarda Nacional Republicana e na Polícia de Segurança Pública em progredir nas suas carreiras e em auferir um justo salário, condizente com o praticado nas restantes instituições estatais.
Pior ainda, permitiram, conscientemente, que a autoridade dos titulares das forças de segurança fosse sendo progressivamente posta em causa por quem tem aversão à ordem pública, chegando-se ao cúmulo em que mais rapidamente um polícia é conduzido à cadeia apenas por cumprir o seu dever, do que um malfeitor ser acolhido num qualquer estabelecimento prisional.
Os políticos habituaram-se ao silêncio de quem tem como suprema responsabilidade garantir a paz e tranquilidade públicas, confundido a obediência com concordância, razão porque foram cedendo somente à chantagem grevista de quase todos os outros servidores do Estado, a quem vão distribuindo benesses em troca de um sossego laboral, não brandindo igual comportamento perante os agentes de autoridade das forças de segurança.
Limitaram-se a aplicar o princípio de que quem cala consente!
No ano em que se comemora o meio século da abrilada, e na sequência de mais uma afronta aos homens e mulheres das duas forças de segurança que com brio e elevado profissionalismo se têm sacrificado em prol do povo que servem, ao concederem o subsídio de risco apenas à Polícia Judiciária, os governantes viram-se confrontados com uma nova realidade, que jamais, nem nos seus piores pesadelos, imaginaram possível, a de uma revolta generalizada de polícias e guardas, que se estendeu a todo o País.
Incapazes de lidar com esta afronta aos seus egos, o chefe do governo e o seu peão de brega responsável pela pasta da administração interna, escudaram-se na sua condição de meros governantes de gestão para não satisfazer as pretensões de quem não exige mais do que aquilo a que tem direito, apesar de terem, escassos dias depois, perante o cenário de entrada de umas centenas de tractores nas principais cidades, desembolsado cerca de duzentos milhões de euros para acalmar os descontentes agricultores, também eles carregados de razão nos seus protestos.
Não contentes, e procurando, desse modo, algum conforto da opinião pública, acusaram as forças de segurança de insubordinação e de estarem minadas pela infiltração de agentes da extrema-direita, desconsiderando assim, e uma vez mais, a justa causa que assiste a quem diariamente arrisca a sua vida pelo próximo.
Nos cinquenta anos da badalada democracia, os responsáveis pela governação do País tiveram ainda o descaramento de equacionar a hipótese de se recorrer aos préstimos das Forças Armadas, as tais a que eles próprios passaram uma certidão de óbito, para que o acto eleitoral que se aproxima possa decorrer com normalidade, caso as Polícias ousem bicotar o transporte das urnas e dos boletins de voto.
É esta a democracia de Abril: desprezo absoluto por quem enverga uma farda e submissão permanente a quem se serve do Estado para fins pessoais.
Obviamente que se trata de uma grotesca falsidade a acusação de que efectivos da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública se insubordinaram, sobretudo sem que nenhum inquérito, seja interno ou por autoria de uma entidade externa, o tenha apontado nesse sentido, nem tão pouco é de levar a sério o disparate de que aquelas duas instituições foram tomadas de assalto por elementos extremistas; agora que há uma revolta latente e que esta pode vir a atingir proporções muito para além do que será razoável, é uma possibilidade que o poder político não pode ignorar.
Porém, este hipotético cenário não poderá ser contornado com ameaças, mas sim escutando-se, com atenção, as reivindicações de quem já esgotou todos os meios de direito ao seu alcance para as verbalizar e satisfazendo, dentro do possível e do razoável, aquelas que se afigurem como justas.
É de toda a conveniência que os políticos de hoje aprendam com as lições do passado; os últimos obreiros do Estado Novo também assobiaram para o lado quando confrontados com as palavras de quem tinha a força das armas do seu lado.
O resultado dessa inércia, todos o conhecemos!
Pedro Ochôa