A Toxicidade da Austeridade

Sabemos bem que a dimensão do ‘barco’ europeu é demasiado grande e pesada para que possa mover-se com agilidade.

sabemos bem, também, que a ideologia dominante, pela sua própria natureza e intransigência, é dotada de pouca flexibilidade para ajustamentos ou inversões de caminho.

sabemos bem, contudo, que as receitas prescritas até agora para enfrentar a crise económica e financeira no mundo ocidental tiveram a singular capacidade de agravar o estado de saúde dos países com problemas e de fazer adoecer as economias até aqui mais saudáveis. ou seja, quem estava doente, ficou pior, quem estava saudável, ficou doente. por isso, amartya sen afirmou: «a grande moralidade da ideia de ‘sacrifício’ tem um efeito tóxico».

os indicadores sociais e económicos exprimem-no bem. nos países com mais dificuldades, elevadíssimas taxas de desemprego – especialmente as relativas aos jovens–, falências de empresas em ritmo nunca visto, perspectivas de crescimento económico em baixa, revistas sempre ainda mais em baixa.

mas nos países que até há pouco pensaríamos que passariam incólumes a este vendaval, as perspectivas não se apresentam risonhas: baixas taxas de crescimento na alemanha; subida do desemprego, queda abrupta do poder de compra e revisão em baixa do crescimento, em frança; reino unido com crescimento negativo, igualmente desemprego muito elevado, grandes perturbações sociais.

é caso para dizer, pois, que urgia um corajoso virar de página e só não via quem não queria ver.

verdade que quem se expõe no espaço público com afirmações firmes num determinado sentido não ousa, de repente, assumir frontalmente que se enganou. tem de ‘salvar a face’. razão pela qual a expressão oral da vontade, em política, pode não coincidir com a acção que se pratica.

foi, mais uma vez, o que aconteceu com o último conselho europeu: dias antes da sua realização, um baixar de expectativas; já aquilo que se passou, transposto nas suas conclusões, foi até um pouco mais além daquilo que a opinião pública poderia esperar, habituada que está à lentidão e à frustração dos processos comunitários de decisão, mesmo perante riscos inquietantes e iminentes.

dessas conclusões, destaco as relativas ao pacto para o crescimento e o emprego, ao financiamento da economia e ao sistema reforçado de governação económica. nas áreas de trabalho aprovadas, a relativa à política fiscal, incluindo a taxa sobre as transações financeiras, o que significa um enorme passo em frente.

ainda bem que se arrepiou caminho. os responsáveis políticos da união sabem bem que não são sustentáveis os actuais níveis de desemprego. põem em risco a coesão social, por um lado, e, por outro, ao serem especialmente elevadas entre os mais jovens, designadamente os mais habilitados, decapitam a esperança sem a qual nenhum ser humano, nem as comunidades humanas, podem viver e desenvolver-se.

mas, estamos apenas no início de uma longa e dura caminhada no sentido de maior arrojo no que tem que ser decidido politicamente, na afirmação dos princípios e valores do projecto europeu, na harmonização fiscal, na mutualização da dívida, no aprofundamento da união politica e da democracia europeia.

no início, muito poucos comungavam desta opinião. a cegueira e o preconceito ideológico eram mais fortes.

a actual liderança do ps afirmou-o desde o princípio e lutou afincadamente por esta inversão de agenda, mesmo com a incompreensão generalizada. hoje, está acompanhada por muitos, em portugal e no contexto europeu. o governo é, neste momento, a excepção.

*jurista e política