Não, as pessoas não são todas iguais

Não acontece frequentemente, mas isso só torna a ocasião mais especial. Às vezes, sem se anunciar e com um sorriso entre o irónico e o perverso, a crónica vem ter connosco.

ainda mal tivemos tempo para deixar cair um par de cabelos, vítimas da angústia da página em branco, e ei-la a escorregar sem esforço pelo papel. tão simples quanto isso, aliás, vou provar ao leitor que não exagero. a crónica de hoje está a ocorrer mesmo aqui ao lado, na mesa paralela à minha numa esplanada de cascais. deixemo-la falar.

nela habitam três cavalheiros trintinhas, com óculos extravagantes e roupas de griffe, numa profusão de marcas a roçar o ridículo que fá-los parecer patrocinados. bebem um vinho óptimo mas o que pediram foi ‘o mais caro’. um deles, o mais próximo do escriba, deve querer mostrar virilidade contra a hipótese sempre assustadora de um assalto – pelo menos deixa a chave do porsche bem à vista sobre a mesa (há umas meninas a cochichar perto daqui), enquanto o mais calado só intervém pontualmente na conversa para conferir se os colegas já viram – ‘mas já viram bem esta maravilha?’ – o relógio aparentemente de ouro que exibe no pulso direito. e quem domina este diálogo? aquele que de facto parece ser o macho-alfa do trio, um cavalheiro que captou a minha atenção – e por consequência ‘ofereceu’ a crónica de bandeja – com a bizarra frase: ‘a solução é tirar os pobres das cidades’. dita solene e serenamente, recebida sem um esgar sequer.

apesar de ter ficado de imediato com as antenas no ar, não consegui deslindar que ‘problema’ ao certo requeria este tipo de tão assertiva ‘solução’. nem, da quantidade de bacoradas seguintes proferidas na mesa do lado, ficaram claras algumas questões ambíguas como: a) como identificar esses pobres; b) que fizeram exactamente para merecer tal espécie de expatriação; c) para onde iriam; e d) como seria efectivamente feito o seu transporte/transladação? nada todavia que pareça incomodar os três iluminados, certamente homens de negócios atazanados pelo tempo e pelos compromissos – por isso, estou certo, é que se encontram a comer bifes às quatro e meia da tarde.

no desenvolvimento da sua tese, ainda ouvi o cavalheiro em questão ‘explicar’ que, assim, nas cidades ficariam exclusivamente as empresas, os escritórios, as instituições, os centros comerciais e culturais. todo um mundo excluído portanto aos supracitados ‘pobres’ e, pelos vistos, toda uma nova teoria social. o termo mais repetido pelo líder do gang de yuppies-bravos, entre expressões inglesas da mais diversa índole, foi ‘terreno’. não sei se isto deixa alguma pista ao leitor mas aqui ficam umas reproduções para reflexão: ‘é preciso estar no terreno’, ‘é preciso conhecer o terreno’, ‘avaliar como o candidato se comporta no terreno’.

pessoalmente, terminei o meu café sonhando de facto com um terreno: uma grande área, receio que enorme, onde pudéssemos colocar todos estes cretinos e deixá-los a falar entre si até ao fim dos seus dias. os referidos ‘pobres’ viriam, como quem visita o badoca park, para os visitar – com autorização para atirar moedinhas e comida. sim, a verdadinha é que as pessoas não são todas iguais. algumas não merecem o oxigénio que nos desperdiçam.

2 – uma notinha sobre

a pré-época futebolística

não vi uma única partida da chamada pré-temporada. no jornal desportivo, evitei diária e ostensivamente as notícias sobre jogadores à beira de assinar pelo meu clube – ‘por horas’, ‘presos por detalhes’, ‘negócios à beira da conclusão’. não sei os nomes dos reforços todos. não tenho expectativas. a não ser ver mais portugueses a jogar à bola (é melhor aguardar confortavelmente sentado). recuso-me a assistir a um minuto sequer de programas televisivos sobre futebol desde que acabou o europeu. não discuto o desporto-rei com amigos há meses. agrada-me a ideia de árbitros estrangeiros nos nossos jogos importantes. só me apetece ir à bola quando for a sério. sinto-me agradável e ingenuamente pronto para ser surpreendido.l

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