Tudo tem um fim, excepto a salsicha, que tem dois

Somos um país de colunistas, uns – poucos – mais livres do que outros. E não uma pátria de cronistas, como por exemplo o Brasil. Ao longo de mais de 300 páginas, tive o privilégio de esforçar-me por honrar o género crónica naquela que foi até hoje a minha mais longa colaboração profissional.

fi-lo com absoluta liberdade, num jornal corajoso, polémico, que todas as semanas tenta verdadeiramente dar notícias e não recados. procurei, por todos os meios ao meu alcance, escrever de acordo com a idade que tenho. evitando colocar-me em patéticos bicos de pés, e recusando sempre fingir-me mais culto, experiente, sabido ou cínico do que sou. gosto do gerúndio, abomino o novo acordo ortográfico, tenho o coração ao pé da boca, não receio ser ingénuo.

em 313 edições de sol, preferi a sinceridade cândida à técnica estudada, aquilo que penso ao que os outros dizem, as questões da minha geração às temáticas do mundo. encarei sempre o dom desta página de crónicas como se fosse visita em casa dos leitores (e do próprio jornal). à procura de renovar esse convite para a semana seguinte. encaro o fim com a tristeza de quem cessa algo que ama, mas com a naturalidade de quem o esperava desde o dia um. carpe diem.

nestes seis anos e algo mais, para citar lou reed, julgo ter ‘crescido em público’. e embora me conheçam eventualmente mais como humorista, só dei asas à comédia quanto entendi natural. escrevi ou tentei escrever quase sempre sobre, em última análise, portugal. reclamando, perorando, sugerindo. revisto e aumentado, ou seja, recorrendo amiúde à hipérbole, à caricatura, ao exagero que tem o potencial de nos acordar como o escape rebentado dum carro a passar de madrugada debaixo da janela. quando fui corrosivo, e creio tê-lo sido muitas vezes, foi absolutamente crente na noção de que só nos incomoda verdadeiramente aquilo que amamos. como no poema de jorge de sousa braga, em que após muito legítimo queixume, o então jovem autor termina: «portugal, eu quero beijar-te, muito apaixonadamente, na boca».

esta página na tabu realizou-me, amadureceu-me, fez-me conhecer pessoas essenciais, alimentou um par de polémicas, trouxe-me um processo judicial, resultou por vezes como terapia, fez-me cometer erros úteis. estarei sempre grato a josé antónio saraiva pelo convite e desejo as maiores felicidades a toda a equipa que, contra ventos, marés, e sobretudo uns quantos marinheiros de água doce, tem construído o semanário.

uma palavra final para os leitores que, de bissau a bruxelas – com as américas de permeio, durante todo este tempo precioso, decidiram gastar algum do seu tempo para partilhar palavras comigo. queria produzir um obrigado que fizesse jus às vossas missivas, mas não sei honestamente como agradecer tanta ternura, sensibilidade e atenção. estou-vos profundamente grato e posso apenas prometer um regresso a médio prazo noutro recanto da imprensa nacional. e perdoem-me por demorar tanto a responder.

ensinaram-me em tempos que jamais se deve terminar um texto com uma citação, mas que seja então mais um erro útil deste vosso escriba. aliás, já agora e em prol do supracitado excesso, que se lixe e sejam duas. não à laia de conselhos, prometo, sou novo demais para tal, mas acreditem-me quando vos digo: li estes versos recentemente e ajudaram-me. talvez façam sentido também para o leitor, e funcionam bem como mash-up, creio. para celebrar a simbiose entre ambos os excertos poéticos, e a minha consigo, ergo o meu copo desde o bar lisboeta onde escrevi parte substancial destas crónicas, e brindo uma última vez a si.

«luto corpo a corpo,

luto todo o tempo,

sem maior proveito

que o da caça ao vento».

carlos drummond de andrade

 

«not a whisper, not a thought,

not a kiss nor look be lost».

w. h. auden l

lfborgez@gmail.com