EUA e a espionagem chinesa: De vítima a vilão

O maior escândalo de ciberespionagem de sempre embaraça os Estados Unidos perante a China.

barack obama contava ter recebido o homólogo chinês xi jinping num ambiente descontraído de um rancho californiano na semana passada. o encontro privado de dia 7 deveria ter servido para aproximar pessoalmente os líderes das duas potências e, com todas as cautelas, abordar o assunto delicado das sucessivas intrusões de piratas informáticos chineses nos servidores de empresas e entidades norte-americanas.

horas antes, porém, um escândalo de proporções históricas estalava nas edições electrónicas do britânico the guardian e do norte-americano washington post, transformando vítima em vilão _e presa em caçador. edward snowden, um antigo técnico de 29 anos de uma empresa contratada pela agência nacional de segurança (nsa, na sigla inglesa), revelava a existência de um gigantesco programa norte-americano de intercepção de comunicações privadas a nível mundial.

através do prism, nome de código, a nsa acede desde 2007 aos dados de todos os utilizadores dos serviços online das gigantes apple, microsoft, facebook, yahoo, google, youtube e skype, entre outras empresas omnipresentes na vida de milhares de milhões de pessoas. emails, chats, telefonemas, vídeos, fotografias e históricos de pesquisas, entre outros dados, estão ao alcance dos técnicos e analistas da secreta norte-americana, explicou snowden ao the_guardian num quarto de hotel em hong kong, para onde fugiu a 31 de maio.

«a nsa construiu uma infra-estrutura que lhe permite interceptar praticamente tudo. desta forma, a maioria das comunicações humanas são armazenadas sem qualquer filtragem. se eu quisesse aceder ao seu email ou ao telemóvel da sua mulher, a palavras-passe, cartões de crédito, basta-me utilizar o sistema», revelou aos jornalistas glenn greenwald e ewen macaskill.

«não quero viver numa sociedade onde estas coisas acontecem. não quero viver num mundo em que tudo o que faço e digo fica gravado», declarou, justificando a decisão de vir a público com os dados do_prism. para trás, snowden deixou um emprego com uma remuneração anual na casa das centenas de milhares de dólares e diz estar disposto a pagar o preço de não voltar a ver família e amigos e de vir a ser privado da sua liberdade – tal como bradley_manning e julian assange, fonte e divulgador de milhares de documentos da diplomacia norte-americana através do_wikileaks.

a casa branca ainda não indicou publicamente se irá requerer a extradição de snowden, apesar de john clapper, chefe máximo das secretas norte-americanas, já ter movido uma queixa-crime contra o técnico. clapper, no entanto, também poderá enfrentar a justiça por ter mentido ao congresso sobre o alcance da sua máquina de espionagem. «a nsa recolhe algum tipo de dado sobre milhões ou centenas de milhões de norte-americanos?», questionou a 12 de março o senador democrata ron wyden. «não, senhor», respondeu o tenente-general, desmentido agora por snowden.

de acordo com uma sondagem da reuters e da ipsos, mais norte-americanos vêem snowden como um «patriota» (31%) do que como um «traidor» (23%). cerca de 35% dos inquiridos defende que o técnico não deve ser processado criminalmente, enquanto 25% deseja ver o norte-americano no banco dos réus.

washington alvo de pequim

no imediato, o maior desafio é colocado à máquina diplomática norte-americana. a revelação abala as relações entre os eua e os seus aliados e rivais. em primeiro lugar, pequim. a imprensa e a comunidade académica chinesa consideram que o caso lesa a imagem dos norte-americanos e a parca confiança cultivada entre os dois lados do pacífico.

«durante meses, washington acusou a china de ciberespionagem, mas afinal a maior ameaça à liberdade individual e à privacidade nos eua provém do poder fora de controlo do seu próprio governo», afirma li haidong, académico de pequim, citado pelo china daily.

«os estados unidos estão a agir como a china», declarou por sua vez o artista dissidente ai weiwei. «ambos os governos pensam que estão a fazer o melhor pelos seus estados e povos mas, como eu bem sei, tais abusos de poder podem arruinar vidas», alertou o opositor do regime de pequim.

a china mantém-se no centro da novela também pelo facto de snowden ter decidido fugir para hong kong, território chinês sob administração especial, onde pretende ficar: «a minha intenção é pedir à justiça e ao povo de hong kong que decida o meu futuro». rússia,_frança (pela voz da ministra da imigração) e islândia já sinalizaram que estariam dispostos a conceder asilo a snowden.

na europa, a indignação perante a revelação do_prism não é menor. viviane reding, vice-presidente da comissão europeia, _enviou um pedido formal de esclarecimentos ao procurador-geral norte-americano eric holder «dada a gravidade da situação e das preocupações expressas pela opinião pública». reding diz estarem em causa «graves consequências para os direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia».

a alemanha, pela voz da ministra da justiça sabine leutheusser-schnarrenberger, considera o caso «profundamente desconcertante e perigoso», exigindo «esclarecimentos» de obama, que visita berlim na próxima semana.

stasi unidos da américa

marcus ferber, eurodeputado da csu (aliado bávaro da cdu de angela merkel), compara agora a nsa à stasi da rda comunista. de resto, populariza-se na internet e nas colunas de opinião o termo «united stasi of america» (stasi unidos da américa), cunhado por daniel ellsberg, o homem que em 1971 divulgou os chamados papéis do pentágono sobre o vietname.

pelo resto do continente europeu, repetem-se as dúvidas e as expressões de preocupação de governos e comissões de protecção de dados.

obama enfrenta ainda contestação interna. a casa branca saiu em defesa do prism, afirmando que o programa é supervisionado pelo congresso e que o seu objectivo é o combate ao terrorismo. mas o desafio surge no próprio congresso, com o senador wyden a sugerir uma acção contra o dirigente das secretas e outros políticos a exigirem um debate sobre o chamado patriot act, base legal para os programas especiais de vigilância e de segurança do pós-11 de setembro.

na terça-feira, congressistas e senadores do partido democrata e do_partido republicano estiveram num encontro à porta fechada com altos dirigentes das secretas e do_fbi. o teor da reunião, afirma a imprensa norte-americana, apenas terá aumentado o alarme e as dúvidas da classe política.

«o povo tem o direito de saber o que se está a passar, mas primeiro o congresso tem de perceber que raio está a acontecer», declarou o democrata bill pascrell.

no governo, o secretário da defesa chuck hagel prometeu analisar o sucessivo recurso do serviços de segurança norte-americanos a empresas privadas. estima-se que dezenas de milhares de funcionários externos tenham actualmente acesso a dados e programas sensíveis como o prism.

por fim, as empresas visadas, que alegam não ter cedido voluntariamente qualquer dado ao abrigo do programa, também entraram em conflito com a casa branca. microsoft, google, facebook e também o twitter (supostamente não abrangido pelo_prism) pretendem tornar público quantas vezes cederam dados em resposta a solicitações judiciais convencionais, de forma a restaurar a confiança dos seus utilizadores. as empresas exigem «mais transparência» ao governo norte-americano e uma colaboração mais aberta em assuntos de segurança.

pedro.guerreiro@sol.pt