Referendo ao kirchnerismo

Em prolongado e absoluto repouso após a remoção cirúrgica de um coágulo no cérebro, Cristina Kirchner foi aconselhada pelos médicos a não seguir pela TV as eleições intercalares deste domingo. E, tendo em conta as últimas sondagens, a Presidente argentina arrisca-se a não perder festa alguma.

dez anos após a chegada ao poder do marido néstor kirchner (falecido em 2010) e seis anos depois de o ter rendido na casa rosada, a renovação de metade dos mandatos na câmara baixa do parlamento e de um terço no senado deverá ditar a perda da maioria absoluta para a presidente. sem esta maioria, kirchner não poderá ir avante com um projecto de revisão constitucional que lhe permitiria a candidatura a um terceiro mandato em 2015.

o traidor e a mona lisa

mais do que uma oposição de direita atomizada, é a insurreição de sergio massa que ameaça o kirchnerismo. o autarca de tigre, um subúrbio de buenos aires, é o favorito à vitória na província capital, que concentra um terço do eleitorado argentino. antigo conselheiro e confidente dos kirchner, massa é considerado um “traidor” pela presidente desde 2010, quando uma série de comunicações diplomáticas norte-americanas divulgadas pela wikileaks deram conta das indiscrições do político junto do embaixador dos estados unidos, a quem disse que cristina não era mais que um fantoche nas mãos de néstor. “se ele não é da oposição, então eu sou a mona lisa”, disse a presidente.

é a massa quem mais interessa a perda de maioria de kirchner, já que o próprio se perfila como candidato presidencial em 2015.

além das lutas internas entre os peronistas de centro-esquerda, kirchner poderá ser também penalizada pelas crescentes dúvidas em relação à economia. este mês, o congresso aprovou um orçamento que prevê 6,2% de crescimento em 2014 e uma taxa de inflação de 10%. no entanto, economistas citados pela oposição prevêem uma expansão do pib de apenas 1% e uma inflação duas vezes superior às estimativas do governo.

a possível fraude estatística (de que buenos aires é sistematicamente acusada desde 2007) tem efeitos práticos na vida dos argentinos e nas finanças públicas. os primeiros, que vêem o poder de compra novamente em acelerada erosão, são forçados a aceitar actualizações salariais menores, enquanto o estado é obrigado a pagar um maior volume de dívida aos credores externos, ao abrigo do acordo de restruturação da década passada.

é essa década de recuperação – que os críticos dos kirchner dizem ser outra ficção estatística – que vai também a referendo no domingo.

pedro.guerreiro@sol.pt