E depois de Mandela

É uma opinião minoritária mas suficientemente explosiva para fazer pensar qualquer sul-africano: a morte de Mandela desencadeará a destruição da África do Sul. Segundo a teoria que corre há anos entre alguns sectores da população de ascendência europeia, Mandela é a cola que segura as pontas de um país ainda dividido entre raças e ávido…

a ideia de uma ‘noite das facas longas’, de um genocídio branco ou de uma vaga de ocupações violentas de propriedades agrícolas – como a registada no vizinho zimbabué de robert mugabe – vende jornais, livros e documentários, e baseia-se em supostas evidências estatísticas de uma crescente onda de crime contra africâneres, sul-africanos anglófonos e imigrantes europeus. “a minha tribo está a morrer”, escreveu recentemente o popular cantor steve hofmeyr, que aponta o assassínio de um agricultor a cada cinco dias. “os brancos estão a ser mortos como moscas e os seus corpos enchiam um estádio de futebol”, afirmou.

mito urbano ou receio fundado? ernst roets, dirigente do grupo de protecção de minorias raciais afriforum, apontou ao guardian a circulação de folhetos ameaçadores e a proliferação de mensagens de ódio nas redes sociais. “existe um grande receio. recebemos telefonemas de pessoas que receiam o dia da morte de mandela e que nos perguntam o que fazer. há grupúsculos a aconselhar as pessoas a fugir do país”, afirma o activista.

“este é de facto um país perigoso em que o crime é um problema, mas se arriscássemos uma previsão, diríamos que não ocorrerá nenhuma guerra racial. poderá haver incidentes isolados, mas penso que a maioria das pessoas, brancas e negras, querem viver em paz”, acrescenta.

as estatísticas deitam água na fervura. em junho, um novo site sul-africano de verificação de factos (fact-checking, um termo em voga no jornalismo anglófono) publicou uma análise da criminalidade no país e chegou à conclusão que a ideia de uma perseguição aos brancos não tem fundamento. segundo o africa check, os sul-africanos de ascendência europeia representam apenas 1,8% das vítimas de homicídio no país, apesar de formarem 8,85% da população. desde 1994, ano que marca o fim definitivo do apartheid, foram mortos 6.498 brancos, um número muito aquém da noção de um estádio cheio de cadáveres apresentada por hofmeyr.

os dados oficiais demonstram ainda que a maioria das vítimas foi assassinada por membros do seu círculo pessoal – familiares, amigos, namorados – como no mediático caso da morte da modelo reeva steenkamp, de que o seu companheiro à data, o atleta paralímpico oscar pistorius, é suspeito.

afastada a ideia de um novo conflito racial, há receios sobre outras tensões que dividem o país de mandela. mbali ntuli, política negra que lidera a ala juvenil da aliança democrática, principal partido de oposição ao anc, defende que a temida “noite das facas longas poderá ganhar forma numa revolta dos menos afortunados contra os mais abastados, numa guerra de classes”.

outros observadores, como a jornalista eve fairbanks, chamam a atenção para a possibilidade de outro tipo de conflito. não entre raças ou classes, mas sim entre os próprios negros. “mandela representou a imagem da unidade negra na áfrica do sul”, escreve na revista salon. “a intensidade da luta contra o domínio branco criou laços entre pessoas que, além de serem vítimas do apartheid, pouco tinham em comum. intelectuais negros educados no reino unido, comunistas negros das linhas mais ortodoxas, mineiros negros, mulheres rurais negras pobres. todos seguiam mandela, todos esperaram pela sua libertação em 1990”, recorda.

nos últimos anos, defende, começaram a surgir sinais de desunião nesta frente. em 2012, a morte de 34 mineiros negros em greve, baleados por uma polícia multirracial sob a tutela de um governo negro, terá sido a evidência mais dramática desta tendência. “dois dos principais aliados no derrube do domínio branco, os mineiros e os políticos negros, lutam agora entre si”, afirma.

além da ad, outro partido rival do anc dá agora os primeiros passos. o agang foi fundado este ano por mamphela ramphele, antiga companheira do herói da luta anti-apartheid steve biko, assassinado em 1977, de quem teve dois filhos. activista dos direitos humanos e antiga administradora do banco mundial, ramphele representa porventura uma maior ameaça para o anc de jacob zuma do que a actual oposição, pois poderá cortejar mais facilmente a classe média negra que ainda vê a ad como o partido dos brancos.

em junho, ramphele lançou um violento ataque contra o chefe do estado, acusando-o de desviar fundos públicos para as obras de expansão da sua mansão. “precisamos de um presidente que entenda que é errado roubar dinheiro do programa de habitação social para construir o seu próprio palácio”, declarou perante 5.000 apoiantes em pretória.

“após 20 anos, os líderes do país falharam o cumprimento da promessa de liberdade pela qual tantas pessoas da minha geração lutaram e morreram. vinte anos é demasiado tempo à espera de emprego, de educação de qualidade, de assistência médica, à espera que milhões saiam da pobreza”, afirmou.

o agang já terá garantido um apoiante de peso para as eleições do próximo ano. o antigo arcebispo desmond tutu, prémio nobel da paz em 1984, elogiou ramphele como “uma líder corajosa e com princípios”. em maio, tutu anunciou que não voltaria a votar no anc “perante o rumo que as coisas tomaram”, declarando que “um movimento de libertação nem sempre se transforma num bom partido”. já em 2011, o líder da igreja anglicana ameaçou “rezar pela derrota do anc” depois do governo ter barrado a entrada no país ao dalai lama.

apesar da expectativa gerada pelo discurso anticorrupção do agang, vários analistas temem que o novo partido venha apenas dividir o voto anti-anc. de resto, a formação política de ramphele surge exactamente depois de um desentendimento entre a activista e a ad, que continua a ser o principal partido da oposição.

além do agang, outro recém-formado movimento promete agitar as águas até 2014. os lutadores pela liberdade económica (eff, na sigla inglesa) de julius malema, o polémico ex-líder da ala juvenil do anc, prometem bater-se por uma alternativa anticapitalista e pela nacionalização de herdades e minas para combater a desigualdade social. malema, outrora um importante aliado de zuma, foi expulso do partido em 2012 depois da justiça sul-africana o ter condenado por racismo por cantar ‘shoot the boer’ (mata o boer) em público.

em todo o caso, as eleições de 2014 podem mesmo inaugurar um novo ciclo político na áfrica do sul. pela primeira vez, uma fatia significativa do eleitorado terá nascido após o fim do apartheid, sem o peso histórico do anc na memória e sem outra imagem deste partido que não a liderança polémica de zuma.

allister sparks, jornalista sul-africano, prevê que “o anc estará em maus lençóis” a médio prazo. “está dividido entre facções e vai desintegrar-se eventualmente”, sentencia. “isso não será mau para o país. será bom. o declínio do anc é do interesse da democracia, porque precisamos de chegar a um ponto em que podemos ter uma mudança de regime periódica através do boletim de votos”.

pedro.guerreiro@sol.pt